Noite
de 24 de dezembro. Mesa farta. Jorge conversa com Noeli, sua sogra.
Guilherme, filho de Jorge e neto de Noeli, brinca com Renato, seu
primo, e conseqüentemente, sobrinho de Jorge e neto de Noeli. Os
primos param perto da mesa e roubam pedaços de tender fatiado,
colocando rapidamente na boca, para ninguém ver. Renato, o mais
novo, cospe um belo pedaço mastigado no chão, e começa a sentir
ânsia de vômito, o que chama a atenção dos presentes. Jorge
interrompe sua conversa para dar a bronca:
-
É, seu merdinha, quis roubar, agora come!! Tá vendo, olha a criação
que o babaca do Pedro dá pro filho dele...
Dona
Noêmia, mãe de Jorge e de Pedro, defende:
-
Você já olhou o Guilherme? Tá com a boca cheia... problema de
criação também?
Jorge
vira as costas para a mãe e vai pegar mais uma cerveja. Elisa, mãe
de Renato, finge que não ouve a provocação do cunhado e vai limpar
as mãos do filho com um guardanapo.
*
Beto
revira os poucos sacos de lixo que encontra nas ruas, vazias pela
festa e pela chuva rala que caía. Prometeu à família que levaria
comida para casa. Graça, sua esposa, aguardava com Letícia, a filha
do casal, de 4 anos, famintas, quase dois dias sem comer uma refeição
digna (que ao menos viesse em um recipiente).
Homem
correto e tímido, Beto não tinha a desenvoltura para pedir comida
nas casas, mesmo sabendo que estranhamente, nessa época do ano, as
pessoas tendem a ser mais benevolentes. Acredita que o tal espírito
natalino realmente pudesse o ajudar, mas não gostava de ser o
“pedinte”; preferia procurar comida e contar com a sorte de
alguém o ver nessas condições e oferecer algo.
Graça
e Letícia tentam aquecer-se cobrindo-se com trapos de pano dentro de
casa, um barraco simplório, que ao menos lhes servia para proteger
da chuva.
A
sorte não estava ao lado de Beto.
*
Pedro
está quase gozando, enquanto Angélica cavalga em cima dele.
-
É esse peru de natal que você quer, né? Eu fico feliz de comer
galinha hoje!
Ela
diminui os movimentos e abaixa para beijá-lo. Com um sorriso de
canto de boca Pedro cola a boca no pescoço de Angélica, que por um
segundo parece gostar, mas em seguida dá um tapa no rosto dele e
levanta o torso, aumentando o nível das sentadas.
-
Ô filho da puta, quer me marcar hoje, tá maluco?
Pedro
ri, com as mãos firmes nas ancas de Angélica.
-
Tá na hora de cair de boca no espumante...
Pedro
tira o corpo de Angélica de cima do seu e se levanta. Angélica
parece incomodada e caminha para longe dele:
-
Que broxante, goza na mão, goza no chão, mas eu que não vou
engolir porra de quem fica fazendo essas piadas de Ary Toledo.
Angélica
sai correndo e se tranca no banheiro, virando apenas para ver a cara
de desespero de Pedro, com o pau na mão.
*
Guilherme
e Renato estão sentados na sala, de castigo. O avô Fausto assiste
ao jornal na TV. As crianças tentam roubar o controle remoto do avô,
que reclama:
-
Calma, jovem. Depois do jornal eu dou esta merda pra vocês, só não
quero que me encham o saco enquanto eu estiver... aí, já tá
acabando. Tá aqui, ó, pega... Filho, que horas que a gente vai
comer?
-
Só estamos esperando o Pedro e a Angélica, pai. A Angélica ia
passar na casa da prima antes, e o Pedro, só Deus sabe... tem que
ver se não foi preso por aí... – Jorge respondeu, já pegando o
celular para ligar para Angélica.
Dona
Noêmia rebateu:
-
Mas só fala merda esse garoto. Jorge, para de pinima com seu
irmão...
Jorge
não conseguiu falar com Angélica, pois o celular estava desligado
ou fora da área...
-
Mãe, vou dar um pulo ali para pegar a Angélica.
Jorge
saiu após fazer o anúncio.
*
Beto
estava cansado e com fome. Fome daquelas que você não sabe o que é,
já que para dar para Graça e Letícia, acabou comendo quase nada
nos dois últimos dias. Já estava ficando um pouco tonto, e resolveu
tocar a campainha de uma casa, aceitando a derrota.
Tocou a campainha.
Pelo portão vazado, dava para ver luzes na casa, dava para ouvir o
som. Percebeu também quando, ao tocar pela segunda vez a campainha,
as pessoas pareceram falar mais baixo, algumas luzes se apagaram, uma
fresta da janela se abriu e cabeças apareceram empilhadas, uma em
cima da outra, parecendo querer olhar quem tocava a campainha;
percebeu quando mais luzes se apagaram, e até o som foi desligado
enquanto ele ainda estava parado em frente ao portão. Percebeu que
não era bem-vindo ali, que não queriam ninguém pedindo algo.
Decidiu voltar aos sacos de lixo.
*
Pedro
está dirigindo e olha descaradamente para as pernas de Angélica,
que está usando um vestido curtíssimo que do modo como está
sentada, deixa aparecer a calcinha de renda vermelha (e os pelos
pubianos ruivos que escapam pela renda).
-Para
de me olhar com essa cara de tarado...
Pedro
sorri e bota a mão direita no meio das pernas de Angélica,
pressionando com o dedo médio o centro da calcinha. Angélica faz
uma cara de prazer, e Pedro se divide entre dirigir e movimentar o
dedo. Angélica abre um pouco mais as pernas e Pedro com um movimento
digital enrola a calcinha no dedo médio e tenta puxar a calcinha de
Angélica.
-
Para, Pedro, olha a palhaçada... A gente já está chegando.
-
Hum, é só chegar na ceia de Natal que você vira santinha, é?
Pedro
faz mais força para puxar a calcinha, ao mesmo tempo que vai parando
o carro em frente ao portão da casa de sua mãe. Angélica fecha as
pernas e segura o braço direito de Pedro com uma das mãos. Com a
outra, ela abre a porta.
-
Parou a brincadeira. Já fez o que queria, não é?
Pedro
sorri, olhando fixamente para o meio das pernas de Angélica, onde
ainda trava uma luta para tirar a calcinha dela. Ouve um som de
Angélica batendo a cabeça, provavelmente na saída do carro, o que
a faz abrir subitamente as pernas e desmontar como que desmaiada para
fora do carro, e no que tenta acompanhar a queda da amante, percebe
um par de pernas do lado de fora do carro.
-
Que isso, a brincadeira está só começando, seu filho da puta!
E
com um cabo de enxada, Jorge acerta o meio da testa do irmão, que
desmaia no carro.
*
Beto
desistiu de pedir, desistiu de catar lixo (provavelmente, só amanhã
as sobras das ceias estarão à disposição dele e dos urubus), e
estava voltando para casa. No entanto, o espírito natalino tem
dessas coisas, ao passar por uma rua escura, enxergou um ponto
iluminado, onde um saco preto refletia uma luz acobreada, uma mistura
de cores que ficou realmente lindo, e o vento que batia no saco,
fazia-o tremular, e a luz movia-se, em um movimento belo que enchia
os olhos de Beto de emoção.
Ele
decidiu que esse seria o último saco a ser visto. Sim, tinha
esperança, talvez ele pudesse levar algo para comerem em casa, mesmo
que fosse pouco. Aproximou-se do saco de lixo, abriu-o lentamente, e
percebeu que era pesado. Ao abrir por completo e trazer o interior do
saco à luz alaranjada, percebeu que havia fartura: carne, diversos
pedaços! Beto chorou. Cheirou para ver se estava muito podre, embora
soubesse que mesmo podre, serviria para ao menos matar a fome de
Graça e Letícia, e dele também. Pois nem podre estava, podia
sentir o cheiro: fresquinha! As lágrimas escorriam por seu rosto,
ele não conseguia conter-se: certamente um presente do céu!
Agradecia mentalmente, não sabia se ao espírito de natal, ao
açougueiro que havia colocado aquilo ali, ou à entidade a quem era
enviado o despacho: agradecia a todos! Fechou a sacola e partiu para
casa, agora revigorado, feliz, forte. Nada mais o incomodava.
Beto
conseguiu a ceia de Natal da família!
*
Dona
Noêmia, Fausto, Noeli, Guilherme, Renato e Elisa continuam esperando
Pedro, o marido de Elisa, e Angélica, a esposa de Jorge. E Jorge
está lavando uma enxada, sem pressa alguma.