segunda-feira, 2 de maio de 2016

A Linha da Vida

Marcelo havia acordado, e ainda zonzo de sono, uma imagem o fez arregalar os olhos: a linha da vida de sua mão aparecia cortada por outra linha. Desesperou-se, pois acreditava piamente em quiromancia, e via a morte interrompendo sua vida abruptamente antes do fim que deveria ser. E sim, conhecia bem sua própria mão para saber que aquela linha nunca estivera ali.
Naquela manhã não conseguiu tomar café: pegar uma faca para passar manteiga no pão parecia assustadoramente ameaçador; tirar o rótulo do iogurte, daquele metal fino, podia fazer um corte em sua mão que o faria esvair-se em sangue - é bizarro, mas existem mortes bizarras; não tinha copo de plástico, e copo de vidro, quebrando, sabe-se lá onde os estilhaços podem parar... Era melhor não tomar café.
Pensou em ligar para alguém, mas lembrou das notícias de mortes porque o celular estourou na cabeça da pessoa. Tirou tudo de casa da tomada, para evitar um curto-circuito e eventual incêndio. Deitou-se na cama para não levantar e acabou dormindo. Quando acordou, de bruços, percebeu que poderia ter sufocado caso vomitasse, já que estava tonto de fraqueza, por não ter comido o dia inteiro. Levantou-se e foi tomar um banho para manter-se acordado. Já nu, a idéia de passar sabonete, com a água, podia acabar escorregando e morrendo ao bater a cabeça na parede ou no registro do chuveiro. Melhor não tomar banho. Queria comer algo. Olhou a geladeira, desligada, e não sentiu-se firme para pegar nada lá que não o pudesse matar. Sair de casa, nem pensar: assalto, seqüestro-relâmpago, bala perdida. Voltou para a cama e cercou-se de travesseiros para que não pudesse virar de bruços.
Foi acordando e voltando a dormir... fraco. Acordando e voltando a dormir, sem levantar. Sua geladeira, que havia deixado levemente aberta, estava com moscas e vermes nas carnes, fungos, totalmente tomada por vida podre. Marcelo estava um caco, magricelo, com olheiras profundas e sem levantar da cama, quase atrofiado pelos dias em que passou, imóvel. Olhou mais uma vez para a palma da mão. A linha que cortava a linha da vida estava mais forte, marcada profundamente, e com um formato peculiar. Reuniu todas as suas forças e levantou-se, com dificuldade. Caminhou, trôpego, até a cozinha. Pegou um facão e olhou, reflexivo. Realmente, era o mesmo formato do corte na linha da vida: a lâmina do facão. Esfaqueou sua barriga até não mais conseguir. Esvaiu-se em sangue, cuspiu sangue, e jogou o facão longe, e caiu sentado na cozinha. Em poucos minutos moscas varejeiras pousavam em sua ferida. Marcelo não tinha forças nem para espantá-las. Sorriu, e a cabeça foi caindo, próximo à geladeira.
A metamorfose não foi em borboleta, mas em uma casa de vermes, que no final, virou apenas milhões de vermes disforme. Lindo de se ver, com um cheiro pútrido inigualável.
A quiromancia não mente.

Sonho filme

Tentarei escrever aqui o máximo de um sonho que tive hoje. Acho que sonhei o mesmo sonho durante 2 ou 3 horas. Foi longo, e não acordei durante. Lá vai.
Esatav comendo em um restaurante, normal, com amigos e a Luciana. Ao sairmos do restaurante e tentar atravessar a rua, dois carros estavam impedindo de caminhar na rua; tivemos que dar a volta nos carros, e saíram dois homens altos, vestidos de terno e com armas na mão. Assustado, corri para trás de um carro, escondendo-me, e a arma do cara soltou bolhas em direção a um prédio, e o prédio sumiu. A arma acabava com as coisas sem demolição, sem nenhum vestígio. Se uma pessoa fosse alvejada, simplesmente sumiria. Sabendo disso, soube que poderia morrer a qualquer momento, pois escondido atrás do carro, o cara podia com uma bolha sumir com o carro, e com outra bolha, comigo. Fiquei deitado, só vendo o que aconteceria. Aparentemente fizeram o serviço deles, e saíram. Preocupado com isso, corri para minha casa, que na verdade, era um apartamento, e avisei meus pais. Morava com a gente um cara que tinha essa arma, e suspeitava-se que ele fazia parte do grupo que havia tomado conta do poder. Ficava implícito que havia agora um pessoal no poder que estava exterminando todos os que não se enquadravam mais na sociedade. Então começamos a vasculhar a parte de fora do apartamento, buscando não sei o quê, eu e meus pais, e isso foi durante um bom tempo, descendo e subindo escadas, revirando escombros, tomando conta pro cara não acordar. O cara acordou e começou a andar pelo apartamento, e lembro que meus pais podiam entrar tranqüilos, mas ele não podia me ver lá, então me escondi até que uma hora dei de cara com ele. Nada aconteceu. Depois foi organizado inclusive uma festa com a família e muitas outras pessoas, Luciana e meus pais estavam. Lembro de um personagem que toda hora se perguntava pelo copo dele, que era um que tinha uma rachadura, e eu mostrava que ele sempre deixava o copo longe dele... E então em certo momento, os caras que controlavam o poder agora (e as armas de bolha) iam chegar, e todos da festa eram procurados, começaram a se esconder. Nesse momento acabei separando-me dos meus pais, fiquei na parte de fora do apartamento, e eles na cozinha. As pessoas da cozinha foram todas pegas, e o pior: não era mais a arma de bolha. Para acabar com as pessoas (e não ficou claro se as pessoas morriam ou se apenas iam viver com uma forma diferente de corpo), chegava um pingüim gigante, com cara de retardado, que chupava as pessoas para dentro dele, não sei se pelo cu ou por uma entrada na barriga, mas as pessoas entravam deformando-se, sendo chupadas, mas inteiras, não em pedaços. Para não ter esse mesmo final, pulei fora do prédio, e acabei caindo próximo ao restaurante do início do sonho. Eu, alguns amigos e a Luciana, novamente. O dono do bar me reconheceu como uma pessoa que deveria ter sido exterminada, e eu mandei ele tomar no cu, tive uma leve briga física com ele, e falei que eu comi naquela merda mais cedo, que ele devia respeitar os clientes. Ele falou que eu devia ter sido exterminado. Eu virei, mandei o dedo do meio pra ele e falei "vai tomar no cu, português filho da puta!". Acho que ele nem era português, mas na hora fez sentido falar isso. E virei as costas para ele, cheio de medo que houvesse uma arma bolha com alguém próximo a ele. Seguimos o caminho, atravessei a rua, e acabei sendo capturado, junto com a Luciana, indo parar numa casa onde os prisioneiros seriam exterminados. Nisso, o desespero começou a bater e bolei um plano para matar as pessoas que tinham o poder agora, e queriam matar-nos: eu tinha que matá-los primeiro. Óbvio. Chegou uma carga, e roubei uma tesoura e escondi na manga da camisa comprida. Comecei a pensar que deveria dar tesouradas profundas nas gargantas das pessoas, em uma ordem, para que não pudessem falar para pedir ajuda enquanto morressem, e tinha que chegar até alguém que tinha a arma, porque aí eu sairia matando todos eles. Quando me infiltrei em um vagão (sim, dentro do apartamento havia um vagão) com as pessoas que deveria matar, vi que eram muitas, e provavelmente eu ia acabar morrendo antes de matar todas; chegou então uma garota com uma notícia de que chegaram pulseiras para quem não precisava mais morrer, e ela tinha duas. Entregou-me uma, mas a outra não era pra Luciana. Então comecei a repensar se mataria ainda as pessoas que controlavam, e morreria tentando matá-las; ou se mataria uma pessoa que foi salva com a pulseira, para roubar a pulseira para a Luciana. Nessa crise ética, acordei, desesperado.

O Trem que Não Passou

Felipe entrou na estação às 4:17 da tarde; ao menos era o que marcava o grande e esdrúxulo relógio da estação de trem. Era domingo e ele estava sozinho na plataforma, o que fazia parecer que um trem devia ter acabado de passar, para seu desespero. O trem demora mais no domingo, "mas há de chegar", pensou ele.
Para variar, estava atrasado, e nessa condição, cada minuto perdido é um lamento. Podia começar a pensar em mentiras para justificar o atraso - o que geralmente fazia - , mas preferiu começar a refletir sobre sua vida. Próximo de completar 40 anos, afinal, sentia-se maduro e com experiência o suficiente para analisar sua trajetória. E óbvio, automaticamente, quase que instintivamente, separava um tempo para reclamar da porra do trem que não passava (mesmo tendo passado da roleta há menos de 30 segundos), como que em um intervalo da análise.
O fato de estar atrasado fazia-o pensar de cara em seu trabalho: ambiente que já o encheu de alegrias, mas que recentemente virava um fardo em sua vida. E lá estava, Felipe na estação, pensando em como passaram rápidos os 15 anos de firma, e como foi rápida sua ascensão; mas também foi rápida e duradoura sua estagnação.
- Merda de trem que não passa!
Felipe chutou um copo de Guaravita que estava no chão em direção à linha do trem, mas o copo parou ainda na plataforma, bem longe de cair. Lembrou de ter sido o destaque entre os estagiários por sua percepção e capacidade de repensar rotas rapidamente; e de quando deu uma sugestão sobre como economizar com envios de catálogos aos clientes - o que economizou muito dinheiro da empresa -, e seu chefe o promoveu direto a supervisor de logística. Foi apresentado ao dono da empresa como "um possível gerente daqui a dois ou três anos", por conta da sagacidade e perspicácia. Hoje, 14 anos após a promoção, continuava um supervisor, e mediano até, com suas "glórias" esquecidas. O relógio marcava 4:23.
- Eu devia ter pego um táxi!
Não parava quieto; sentou por menos de um minuto e agitava-se, como um animal selvagem em jaula, andando de um lado para o outro. Chutou novamente o copinho de Guaravita, que parou, obedientemente, atrás da linha amarela. Pensou em sua vida em família, o amor por crianças e a expectativa que desse um bom pai e um bom marido. No entanto, trocou de amores como quem trocava de cueca, e nunca teve um filho. Sobrava vontade de ter uma criança, mas não tinha como pensar nisso, e realmente deixava para lá. A família tinha outras fontes de bebês, e podiam dormir sem isso, afinal, anos 2000, superem essa idéia de que é preciso uma família para sentir-se realizado. Olhou para o relógio: 4:29.
- Domingo é foda. Ainda vou chegar lá, vai estar passando a porra do Faustão...
Um novo bico e o copo de Guaravita finalmente caiu na linha de trem. Olhou para as pedras e na hora pensou em seu hobby, pintar pedrinhas e montar cenários em pequenas caixas de vidro. Começou quando adolescente, e fazia cenários toscos e pobres que remetiam a filmes B ou séries como Chaves, Chapolin. Fazia um sucesso entre os amigos, e foi aperfeiçoando. Teve uma época em que chegou a fazer cenários de séries que estavam em voga - e realmente, trabalhos bonitos que chamavam a atenção -, e apareceu em uma matéria de um jornal popular. Os amigos e familiares ficaram empolgados, pessoas entraram em contato para encomendar cenários específicos, mas ele recusou. Era apenas um hobby e não estava afim de comercializar o que fazia para se divertir. Com a cobrança, passou a fazer menos e menos, até que parou de fazer e jogou muitos dos antigos fora. O relógio estava cravado em 4:35.
- O trem que não passou... - resmungou, com o olhar apático, olhando para o horizonte, quando a linha férrea encontrava um muro.
Não era mais o único na estação, mas, domingo, a estação continuava relativamente vazia. Todos aguardavam o trem, muitos sentados, serenos e com a tranqüilidade que o domingo permite. Felipe estava novamente aguardando, ansioso, porém, quieto. Apenas mexia umas pedrinhas em sua mão, rodando-as em loop, para cima e para baixo. O trem surgiu no horizonte e veio aproximando-se. A velocidade do trem; é isso que o faz ser ainda escolhido, e óbvio, o fato de não pegar engarrafamento.
- O trem que não passou... - balbuciou Felipe, com um olhar perdido, e ao mesmo tempo, decidido.
O trem aproximava-se da estação. Aqueles que iam embarcar no veículo levantavam dos bancos, espreguiçavam-se, tomavam lentamente suas posições - atrás da linha amarela. Felipe posicionou-se, ajeitando-se para que as pedras não o incomodassem nesse momento. Olhou para o lado direito e viu o trem crescendo gradualmente; virou a cabeça para a frente e viu o céu, e em seu campo de visão, a borda da plataforma. Sorriu.
- Eu sou o trem que não passou...
Felipe falou isso, sem berrar, mas audível o suficiente para chamar a atenção de um senhor sonolento que aguardava o trem, que desesperou-se e passou a abanar os braços descoordenadamente para o trem, que chegava, imponente, e a gritar:
- Homem na linha!!! Pára!!! Homem na linha!!
O trem obviamente ia parar, afinal, para isso servem as estações, e esse foi um erro de cálculo de Felipe, que em seu desespero, só pensou na capacidade de destruição do trem a partir de sua velocidade total, e não de sua velocidade quando chega na estação: deitado na linha férrea, achou que o trem passaria a toda, cortando-lhe a cabeça e o corpo com a facilidade com que um sushiman destroça um salmão; no entanto, uma roda do trem, que vinha freando para parar na estação, agarrou-se ao osso de sua saboneteira, enquanto a outra, paralela, cravava em sua bacia e arrastou-o por uns 50 metros, enquanto Felipe sentia a pele do pescoço repuxar e arder, fazendo-o conhecer sete níveis do inferno antes de morrer. A primeira parte a ser separada do corpo foram as pernas, já que a
bacia foi facilmente destrinchada, espalhando sangue, tripa e bosta pela linha do trem. E o pouco que o cérebro conseguia fazer era trincar os dentes e desejar a morte, embora o instinto natural, mesmo em casos de suicídio, busque manter nossa vida: o ombro direito de Felipe estava sendo fatiado pela roda, pois levantava, tentando dar um apoio além da saboneteira para parar a dor de puxar a pele do pescoço. Mas enfim, antes do trem parar, uma parte da pele e do couro cabeludo foram arrancadas, deixando os músculos da face à mostra por pouco tempo, pois logo após a roda conseguiu desviar do osso que a impedia, e separou a cabeça do torso de Felipe. A cabeça bateu nas pedras, ricocheteou na parte de baixo do trem, nas rodas, nas pedras de novo e foi assim até o trem parar. Irreconhecível, nosso protagonista estava arrasado, em pedaços. Literalmente.
E foi assim que o trem passou sobre "o trem que não passou".