terça-feira, 5 de setembro de 2017

Corrompendo

Prova de baliza. É o início da avaliação prática para obter a Permissão Para Dirigir do Detran. Não, você não consegue a Carteira Nacional de Habilitação se passar no exame, apenas uma permissão com a validade de um ano, durante o qual será avaliado, e só então, se não cometer infrações, receberá a CNH. Mas acho que isso não é interessante de discutir aqui, já que trata-se de ficção (mesmo que com muito de verdade nela), e não de informação; no entanto, um pouco de informação, quando não há sobre o que escrever, ou o texto é ruim, ou curto demais, sempre é recurso de algum charlatão que queira passar-se por escritor. Bom, sigamos o texto.
O nervosismo é visível no rosto de Carlos, que acaba de entrar no carro e tenta ajustar-se com o banco e o cinto de segurança. Sua gordura o atrapalha, bate o joelho no volante, seus peitos, após a compressão do cinto, parecem pender capengas da tira que cruza seu torso, como uma She-Ra nada sexy. Em certo momento ele ajeita a tetinha, e olha para o examinador, que só nesse momento desvia o olhar de sua prancheta diretamente para o peito cadente de Carlos, abrindo um sorriso amarelo de quem sabe que não poderá desver a cena.
- Vai lá, pode estacionar.
Carlos olha para o retrovisor. O suor escorre e pinga de sua sobrancelha direto para a camisa. Ele passa a mão com o indicador estendido na testa, como se fosse um limpador de vidros de automóvel; uma enchurrada cai no carro quando ele sacode a mão, e um pingo cai no bigode do examinador, sem que Carlos perceba - nem mesmo viu o olhar frio que o dono do bigode virou para ele. Carlos agora estava pronto, colocou a cabeça para fora, colocou a mão na marcha, engatou a primeira e foi para a frente. Alinhou o carro com a baliza, engatou a ré e começou a entrar na vaga. Umas novas gotas começaram a descer em sua testa, mas ele estava concentrado demais no retrovisor, vendo as balizas de trás; ao chegar no limite, olhou com os dois olhos para cima, mas ainda assim não conseguia ver as gotas de suor, e tirou a mão do volante para limpar a testa novamente. Nesse pequeno momento de distração, não percebeu, mas o seu pé do acelerador não parou de pisar, suavemente, e quando estava escorrendo a chuva que brotava em sua cabeça, ouviu o grito:
- Pare!
Sua mente trabalhou rápido, e automaticamente ele afundou o pé no freio, dando um solavanco no carro e fazendo gotas de seu suor gorduroso espalharem-se pela parte de dentro do parabrisa. O examinador tirou o cinto de segurança.
- Você queimou a faixa, está reprovado.
Carlos não estava entendendo.
- Como assim, queimei a faixa?
- Meu amigo, seu pneu passou da faixa que simula o meio-fio. Você está reprovado. Fica prestando atenção nessa suadeira aí, não está atento ao trânsito...
- Mas só por isso eu reprovei? Cara, eu preciso da carteira... Não pode ser só um err...
O examinador coloca a prancheta a poucos centímetros do rosto de Carlos.
- Olha aqui! Queimar a faixa, perde 4 pontos! Só pode perder 3. Reprovado!
- Poxa, mas você não pode...
Uma palma de mão, com os dedos totalmente abertos, surge perto da boca de Carlos, fazendo-o calar-se. O examinador começa a falar.
- Lógico que isso é um erro grave, mas pode ser que eu não tenha visto... Tudo depende de o senhor não querer pagar o DUDA e aulas de autoescola tudo de novo...
Carlos olha para ele e franze as sobrancelhas. O examinador tenta novamente:
- Isso aconteceu, eu estou vendo, olha aqui pelo retrovisor, consegue ver o seu pneu em cima da faixa? Mas... podemos chegar a um acordo e eu posso esquecer isso.
- Ah, então por favor, esqueça. Não vou repetir esse erro...
- Se você não quiser ter gastos com DUDA, com aulas de autoescola - repetiu o examinador.
Carlos franziu novamente as sobrancelhas.
- O senhor quer dizer, que eu teria que pagar algo a você?
- Se eu te reprovar você terá alguns gastos...
- Entendi... Então se eu te der R$ 100, você pode esquecer isso?
O examinador riu e colocou a mão na maçaneta da porta.
- Por R$ 100 eu abro essa porta agora e o senhor está reprovado.
Carlos esticou o braço e segurou o examinador no banco do carona.
- Calma... de quanto estamos falando, exatamente?
- Bom, só de DUDA você teria que pagar R$ 270...
- Fala logo, quanto você quer?
- Quatrocentos reais.
- Entendi... bom, então continuaremos fazendo a prova.
- Tá, mas só dou a canetada de aprovado após receber o dinheiro, senão, para todos os efeitos, você queimou a faixa.
- Não vou te dar dinheiro nenhum.
- Haha. Então sai do carro que a prova acabou.
Carlos pega sua carteira e retira de dentro dela um documento plastificado.
- Carlos Freitas, escrivão da Polícia Civil. Continuamos a prova ou você quer ir preso por suborno?
- Calma, calma, seu Carlos. Eu só tentei ajudar o senhor porque fui com a sua cara... Quê isso...
Carlos guardou o documento e a carteira no bolso.
- Foi com a minha cara o caralho, quer é encher o cu de grana suja, né, filho da puta?
Agora foi a vez do examinador começar a suar.
- O-olha, seu Carlos, eu acho que houve um mal-entendido. O senhor queimou a faixa, e eu tentei não te reprovar... Eu posso deixar por duzentos contos então, e o senhor continua a prova.
Carlos agora gargalhou.
- Hahahahaha! Acho que não estamos nos entendendo mesmo... Ou você me passa na prova, ou eu te levo preso por tentativa de suborno de agente público.
- Mas com isso o senhor estaria me subornando... Não com dinheiro, mas aliviando minha infração...
Carlos parou para pensar. O examinador continuou.
- E além do mais, temos uma câmera aqui no carro, que grava a prova inteira. Tenho provas de que o senhor está me subornando.
- Mas para isso, teria que mostrar que você tentou me subornar primeiro... E se é gravado mesmo, como é que você tenta arrancar dinheiro das pessoas, mesmo com o vídeo?
- Eu dou uma parte pro pessoal que trabalha com os vídeos; aí sabe como é, arquivo digital, alguns falham, né? Hehehe
- Hm, entendi. Mas enfim, a minha vai sair de graça, senão você vai preso por tentativa de suborno de agente de polícia.
- Mas você aqui não está na sua função, então isso se enquadraria como o quê? Qual seria a minha pena?
Os dois se olharam. Carlos abaixou a cabeça.
- Não sei... Comprei meu diploma de direito...
O examinador interrompeu a reflexão de Carlos, que estava com os olhos fechados, cabisbaixo, colocando a mão suavemente em seu braço.
- Seu Carlos, cento e cinqüenta, o senhor passa e a gente dá um sumiço nesse arquivo, pode ser?
Carlos fez que sim com a cabeça, engatou a primeira e continuou a prova. E, claro, foi aprovado.