quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Subjetividade

Está faltando subjetividade no mundo.
As pessoas não estão sabendo interpretar além das palavras, das imagens, estão guiando-se apenas pelo literal.
O retrocesso vem pela perda poética. Quando deixamos de interpretar palavras e imagens e nos prendemos a elas, não a o que elas remetem, perdemos a humanidade.
Se há racismo denunciado em uma obra, as pessoas acham que é uma obra racista. Se há pedofilia retratada, que é uma obra pedófila. E o contexto? A ironia aqui não pode mais estar presente, porque, ironicamente, perdeu-se.
Mas há salvação.
Por mais clichê que seja, a salvação está nas crianças.
Peguei uma faca de pão, estava na hora do lanche. Chamei Giovanna para comer.
- Eu não tô com fome agora, titio.
Apontei a faca para ela, com uma cara ameaçadora.
- Olha aqui, vai comer sim, senão eu te corto toda!
Ela riu.
- Não tá vendo que eu tô com a faca na mão? E você sabe que eu tenho um machado aqui, hein...
Ela riu mais ainda.
- Você não faria nada comigo. Você me ama.

Puta que pariu. Quando uma criança de 7 anos é mais inteligente do que todo um grupo de seres humanos imbecis que não conseguem ir além do óbvio, é porque estamos mal... mas há salvação.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Reminiscências

- Olha, o tio Tonico! Tio Tonico!
O senhor, que caminhava no corredor, olhou para o lado e viu a fonte da tentativa de grito: uma pequena mulher, com um casaquinho de tricô, próprio apenas para os que alcançaram certa idade na vida.
- Tio Tonico, quanto tempo!
Iza estendeu a mão e beijou no rosto o velho, seus olhos brilharam.
- Como vai o pessoal, hein? Manda um beijo pra todo mundo. Eu tô tentando falar com a Carminha, o Tião, mas aqui eu tô tendo muito trabalho, é dia e noite limpando essa casa toda! Nem minha mãe eu tenho conseguido visitar. Às vezes eu subo o morro, mas da última vez tava muito escuro, não consegui encontrar ela, não...
Tonico apenas sorria, já que não havia como entrar na conversa. Iza ditava o ritmo e cortava as pausas e qualquer possibilidade de resposta.
- Olha, eu tô querendo sair daqui, porque... aqui o pessoal é legal, é tudo bom, mas... Eu tenho que dormir aqui, não tô gostando disso. E meu pai, meu pai não gosta disso não. Haha é... ele quer a filha dele dormindo em casa, onde já se viu, eu tenho que sair às vezes de noite, andar no morro tudo escuro, acabo nem achando a casa. Mas quando me pagarem esse salário, eu vou sair. Quero ficar na minha casinha, comer minha comidinha. Tem que ver o pessoal né, eles sentem falta de mim também.
Olhando para o relógio e abrindo um sorriso desenganado pelas sobrancelhas, Tonico pegou as mãos de Iza, deu um beijo em suas bochechas flácidas e conseguiu falar pela primeira vez na conversa.
- É isso mesmo! Arranja um outro trabalho e... sucesso! Pode deixar que eu vou falar com todo mundo que você mandou lembranças. Tchau, tchau!
Iza tinha o olhar lacrimejante aliado ao sorriso sincero, apesar dos falsos dentes. Acompanhou a ida de tio Tonico ao longo do corredor, até ele sair pela porta de madeira que a separava do resto do mundo.
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Iza gargalhava enquanto uma moça acariciava sua mão, o que, aliado ao sol que fazia, discontraía o ambiente naquela tarde.
- Mãe não! Eu sou sua irmã, menina!
A risada era gostosa de ouvir, e espalhafatosa, soava longe; só era interrompida com as falas desenfreadas dela.
- Sua mãe tem que ser mais velha, eu não tenho idade pra ser sua mãe, não, mas te peguei no colo. Isso eu peguei. Todo mundo gostava de mim, e aqui também gosta. Eu ficaria aqui, mas eu quero ver minha mãe, aqui eles não deixam.
- Para de bobeira, eu sou sua filha! Esqueceu de mim, Flavia, mãe?
Iza não ouvia. Falava sem parar, e a tentativa de interrupção da filha foi apenas uma pequena interferência, facilmente contornada pela senhora, que agora mudava drasticamente o semblante.
- Eu tô com saudade da minha mãe... Ela quer me ver também, né, poxa. Tá certa. Ninguém tem filho pra deixar largado no mundo, não. Ela gosta muito de mim...
E assim continuaram, em um diálogo nonsense, por boa parte da tarde. Até o final da visita.
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- Bom dia, dona Iza!
A velhinha virou-se para ver quem a chamava, e olhou para o rosto do senhor, de barba e cabelo brancos, sorrindo para ela. Não sorriu, mas abriu os olhos, surpresa. Olhou-o, mas o máximo que conseguiu foi erguer as sobrancelhas e buscar um pouco de ar.
- A senhora não está lembrada de mim?
Iza apertava um pouco os olhos, botou uma das mãos no rosto do senhor.
- Ai, eu tô meio esquecida... Mas eu lembro de você sim, só o nome é que tá sumindo da cabeça.
O homem abriu um sorriso.
- Você tinha me chamado de tio...
- Tio Juca! Hahaha tá vendo, eu me alembro, mas eu tô meio ruim. Hahaha tio Juca! Tio Juca! Como é que tá o pessoal?
O homem solta uma gargalhada.
- Agora eu sou Juca? Eu era o tio Tonico outro dia...
O semblante de Iza fechou-se e um olhar de lado cortou a fala. Logo após, a velha gargalhou.
- Que tio Tonico, o quê! É tio Juca!
E abraçou o senhor, que riu mais ainda.
- Tio Juca, manda um abraço pra todo mundo, hein! Eu vou passar um dia lá, quando eu for na minha mãe!
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- Oi, mãe! Tudo bem? Tudo bem?
Flávia chegou cumprimentando a mãe e as enfermeiras do asilo que estavam comandando a atividade no momento: fazer colares e pulseiras com nylon e penduricalhos. Iza estava concentrada tentando enfiar o fio por dentro de um buraco pequeno em uma miçanga de plástico laranja. Era difícil de enxergar, era difícil de controlar a tremedeira das mão; ainda assim, conseguiu, e com a expressão mudando da preocupação para um sorriso iminente, olhou e viu Flávia.
- Oi! Tudo bem por aqui sim, e você?
Flávia abraçou e beijou a mãe.
- Vou roubar ela aqui de vocês um pouquinho, tá?
Iza olhou para a enfermeira mais próxima, suspendendo os braços com o colar inacabado, e deixou em suas mãos; levantou-se com dificuldade, apoiada nas mãos de Flávia, e ao final do movimento, virou-se para as meninas.
- Eu vou cá prosear, mas eu volto.
Sorrisos brotavam sempre com as frases daquela velhinha, não tão sensata, não tão lúcida, mas com uma capacidade de ensinar como levar a vida digna de inveja de qualquer guru. A filha colocou Iza sentada em um banco, para pegar um banho de jacaré.
- Sabe quem eu sou?
A velhinha piscou e abriu um sorriso largo, mostrando todo o amarelo de sua velha dentadura.
- Minha filha, ué.
E abraçou Flávia, rindo. Depois do abraço, continuava rindo.
- Por que? Não quer mais ser minha filha?
A filha sorriu e começou a conversar com a mãe, um daqueles assuntos que não se sabe nem por que eles vêm, nem a diferença que isso faz no mundo, mas quando a diferença mais importante é para uma pessoa só, foda-se o mundo. E de futilidades foram falando, até que Eduardo chegou e abanou as mãos na direção das duas. Aproximou-se e botou a mão no ombro de Flávia.
- Me chamou já de tio Juca e de tio Tonico. Né, dona Iza? Tudo bem com a senhora?
E ao responder que tudo estava bem, Iza já não lembrava do início da fala, quando foi dito que ela o chamava de Juca ou Tonico.
Mas não importavam mais suas reminiscências; tudo estava bem, isso é que importava.