segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Trem que Não Passou

Felipe entrou na estação às 4:17 da tarde; ao menos era o que marcava o grande e esdrúxulo relógio da estação de trem. Era domingo e ele estava sozinho na plataforma, o que fazia parecer que um trem devia ter acabado de passar, para seu desespero. O trem demora mais no domingo, "mas há de chegar", pensou ele.
Para variar, estava atrasado, e nessa condição, cada minuto perdido é um lamento. Podia começar a pensar em mentiras para justificar o atraso - o que geralmente fazia - , mas preferiu começar a refletir sobre sua vida. Próximo de completar 40 anos, afinal, sentia-se maduro e com experiência o suficiente para analisar sua trajetória. E óbvio, automaticamente, quase que instintivamente, separava um tempo para reclamar da porra do trem que não passava (mesmo tendo passado da roleta há menos de 30 segundos), como que em um intervalo da análise.
O fato de estar atrasado fazia-o pensar de cara em seu trabalho: ambiente que já o encheu de alegrias, mas que recentemente virava um fardo em sua vida. E lá estava, Felipe na estação, pensando em como passaram rápidos os 15 anos de firma, e como foi rápida sua ascensão; mas também foi rápida e duradoura sua estagnação.
- Merda de trem que não passa!
Felipe chutou um copo de Guaravita que estava no chão em direção à linha do trem, mas o copo parou ainda na plataforma, bem longe de cair. Lembrou de ter sido o destaque entre os estagiários por sua percepção e capacidade de repensar rotas rapidamente; e de quando deu uma sugestão sobre como economizar com envios de catálogos aos clientes - o que economizou muito dinheiro da empresa -, e seu chefe o promoveu direto a supervisor de logística. Foi apresentado ao dono da empresa como "um possível gerente daqui a dois ou três anos", por conta da sagacidade e perspicácia. Hoje, 14 anos após a promoção, continuava um supervisor, e mediano até, com suas "glórias" esquecidas. O relógio marcava 4:23.
- Eu devia ter pego um táxi!
Não parava quieto; sentou por menos de um minuto e agitava-se, como um animal selvagem em jaula, andando de um lado para o outro. Chutou novamente o copinho de Guaravita, que parou, obedientemente, atrás da linha amarela. Pensou em sua vida em família, o amor por crianças e a expectativa que desse um bom pai e um bom marido. No entanto, trocou de amores como quem trocava de cueca, e nunca teve um filho. Sobrava vontade de ter uma criança, mas não tinha como pensar nisso, e realmente deixava para lá. A família tinha outras fontes de bebês, e podiam dormir sem isso, afinal, anos 2000, superem essa idéia de que é preciso uma família para sentir-se realizado. Olhou para o relógio: 4:29.
- Domingo é foda. Ainda vou chegar lá, vai estar passando a porra do Faustão...
Um novo bico e o copo de Guaravita finalmente caiu na linha de trem. Olhou para as pedras e na hora pensou em seu hobby, pintar pedrinhas e montar cenários em pequenas caixas de vidro. Começou quando adolescente, e fazia cenários toscos e pobres que remetiam a filmes B ou séries como Chaves, Chapolin. Fazia um sucesso entre os amigos, e foi aperfeiçoando. Teve uma época em que chegou a fazer cenários de séries que estavam em voga - e realmente, trabalhos bonitos que chamavam a atenção -, e apareceu em uma matéria de um jornal popular. Os amigos e familiares ficaram empolgados, pessoas entraram em contato para encomendar cenários específicos, mas ele recusou. Era apenas um hobby e não estava afim de comercializar o que fazia para se divertir. Com a cobrança, passou a fazer menos e menos, até que parou de fazer e jogou muitos dos antigos fora. O relógio estava cravado em 4:35.
- O trem que não passou... - resmungou, com o olhar apático, olhando para o horizonte, quando a linha férrea encontrava um muro.
Não era mais o único na estação, mas, domingo, a estação continuava relativamente vazia. Todos aguardavam o trem, muitos sentados, serenos e com a tranqüilidade que o domingo permite. Felipe estava novamente aguardando, ansioso, porém, quieto. Apenas mexia umas pedrinhas em sua mão, rodando-as em loop, para cima e para baixo. O trem surgiu no horizonte e veio aproximando-se. A velocidade do trem; é isso que o faz ser ainda escolhido, e óbvio, o fato de não pegar engarrafamento.
- O trem que não passou... - balbuciou Felipe, com um olhar perdido, e ao mesmo tempo, decidido.
O trem aproximava-se da estação. Aqueles que iam embarcar no veículo levantavam dos bancos, espreguiçavam-se, tomavam lentamente suas posições - atrás da linha amarela. Felipe posicionou-se, ajeitando-se para que as pedras não o incomodassem nesse momento. Olhou para o lado direito e viu o trem crescendo gradualmente; virou a cabeça para a frente e viu o céu, e em seu campo de visão, a borda da plataforma. Sorriu.
- Eu sou o trem que não passou...
Felipe falou isso, sem berrar, mas audível o suficiente para chamar a atenção de um senhor sonolento que aguardava o trem, que desesperou-se e passou a abanar os braços descoordenadamente para o trem, que chegava, imponente, e a gritar:
- Homem na linha!!! Pára!!! Homem na linha!!
O trem obviamente ia parar, afinal, para isso servem as estações, e esse foi um erro de cálculo de Felipe, que em seu desespero, só pensou na capacidade de destruição do trem a partir de sua velocidade total, e não de sua velocidade quando chega na estação: deitado na linha férrea, achou que o trem passaria a toda, cortando-lhe a cabeça e o corpo com a facilidade com que um sushiman destroça um salmão; no entanto, uma roda do trem, que vinha freando para parar na estação, agarrou-se ao osso de sua saboneteira, enquanto a outra, paralela, cravava em sua bacia e arrastou-o por uns 50 metros, enquanto Felipe sentia a pele do pescoço repuxar e arder, fazendo-o conhecer sete níveis do inferno antes de morrer. A primeira parte a ser separada do corpo foram as pernas, já que a
bacia foi facilmente destrinchada, espalhando sangue, tripa e bosta pela linha do trem. E o pouco que o cérebro conseguia fazer era trincar os dentes e desejar a morte, embora o instinto natural, mesmo em casos de suicídio, busque manter nossa vida: o ombro direito de Felipe estava sendo fatiado pela roda, pois levantava, tentando dar um apoio além da saboneteira para parar a dor de puxar a pele do pescoço. Mas enfim, antes do trem parar, uma parte da pele e do couro cabeludo foram arrancadas, deixando os músculos da face à mostra por pouco tempo, pois logo após a roda conseguiu desviar do osso que a impedia, e separou a cabeça do torso de Felipe. A cabeça bateu nas pedras, ricocheteou na parte de baixo do trem, nas rodas, nas pedras de novo e foi assim até o trem parar. Irreconhecível, nosso protagonista estava arrasado, em pedaços. Literalmente.
E foi assim que o trem passou sobre "o trem que não passou".

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