sábado, 5 de dezembro de 2015

Ceia de Natal


Noite de 24 de dezembro. Mesa farta. Jorge conversa com Noeli, sua sogra. Guilherme, filho de Jorge e neto de Noeli, brinca com Renato, seu primo, e conseqüentemente, sobrinho de Jorge e neto de Noeli. Os primos param perto da mesa e roubam pedaços de tender fatiado, colocando rapidamente na boca, para ninguém ver. Renato, o mais novo, cospe um belo pedaço mastigado no chão, e começa a sentir ânsia de vômito, o que chama a atenção dos presentes. Jorge interrompe sua conversa para dar a bronca:
- É, seu merdinha, quis roubar, agora come!! Tá vendo, olha a criação que o babaca do Pedro dá pro filho dele...
Dona Noêmia, mãe de Jorge e de Pedro, defende:
- Você já olhou o Guilherme? Tá com a boca cheia... problema de criação também?
Jorge vira as costas para a mãe e vai pegar mais uma cerveja. Elisa, mãe de Renato, finge que não ouve a provocação do cunhado e vai limpar as mãos do filho com um guardanapo.
*
Beto revira os poucos sacos de lixo que encontra nas ruas, vazias pela festa e pela chuva rala que caía. Prometeu à família que levaria comida para casa. Graça, sua esposa, aguardava com Letícia, a filha do casal, de 4 anos, famintas, quase dois dias sem comer uma refeição digna (que ao menos viesse em um recipiente).
Homem correto e tímido, Beto não tinha a desenvoltura para pedir comida nas casas, mesmo sabendo que estranhamente, nessa época do ano, as pessoas tendem a ser mais benevolentes. Acredita que o tal espírito natalino realmente pudesse o ajudar, mas não gostava de ser o “pedinte”; preferia procurar comida e contar com a sorte de alguém o ver nessas condições e oferecer algo.
Graça e Letícia tentam aquecer-se cobrindo-se com trapos de pano dentro de casa, um barraco simplório, que ao menos lhes servia para proteger da chuva.
A sorte não estava ao lado de Beto.
*
Pedro está quase gozando, enquanto Angélica cavalga em cima dele.
- É esse peru de natal que você quer, né? Eu fico feliz de comer galinha hoje!
Ela diminui os movimentos e abaixa para beijá-lo. Com um sorriso de canto de boca Pedro cola a boca no pescoço de Angélica, que por um segundo parece gostar, mas em seguida dá um tapa no rosto dele e levanta o torso, aumentando o nível das sentadas.
- Ô filho da puta, quer me marcar hoje, tá maluco?
Pedro ri, com as mãos firmes nas ancas de Angélica.
- Tá na hora de cair de boca no espumante...
Pedro tira o corpo de Angélica de cima do seu e se levanta. Angélica parece incomodada e caminha para longe dele:
- Que broxante, goza na mão, goza no chão, mas eu que não vou engolir porra de quem fica fazendo essas piadas de Ary Toledo.
Angélica sai correndo e se tranca no banheiro, virando apenas para ver a cara de desespero de Pedro, com o pau na mão.
*
Guilherme e Renato estão sentados na sala, de castigo. O avô Fausto assiste ao jornal na TV. As crianças tentam roubar o controle remoto do avô, que reclama:
- Calma, jovem. Depois do jornal eu dou esta merda pra vocês, só não quero que me encham o saco enquanto eu estiver... aí, já tá acabando. Tá aqui, ó, pega... Filho, que horas que a gente vai comer?
- Só estamos esperando o Pedro e a Angélica, pai. A Angélica ia passar na casa da prima antes, e o Pedro, só Deus sabe... tem que ver se não foi preso por aí... – Jorge respondeu, já pegando o celular para ligar para Angélica.
Dona Noêmia rebateu:
- Mas só fala merda esse garoto. Jorge, para de pinima com seu irmão...
Jorge não conseguiu falar com Angélica, pois o celular estava desligado ou fora da área...
- Mãe, vou dar um pulo ali para pegar a Angélica.
Jorge saiu após fazer o anúncio.
*
Beto estava cansado e com fome. Fome daquelas que você não sabe o que é, já que para dar para Graça e Letícia, acabou comendo quase nada nos dois últimos dias. Já estava ficando um pouco tonto, e resolveu tocar a campainha de uma casa, aceitando a derrota.
Tocou a campainha. Pelo portão vazado, dava para ver luzes na casa, dava para ouvir o som. Percebeu também quando, ao tocar pela segunda vez a campainha, as pessoas pareceram falar mais baixo, algumas luzes se apagaram, uma fresta da janela se abriu e cabeças apareceram empilhadas, uma em cima da outra, parecendo querer olhar quem tocava a campainha; percebeu quando mais luzes se apagaram, e até o som foi desligado enquanto ele ainda estava parado em frente ao portão. Percebeu que não era bem-vindo ali, que não queriam ninguém pedindo algo. Decidiu voltar aos sacos de lixo.
*

Pedro está dirigindo e olha descaradamente para as pernas de Angélica, que está usando um vestido curtíssimo que do modo como está sentada, deixa aparecer a calcinha de renda vermelha (e os pelos pubianos ruivos que escapam pela renda).
-Para de me olhar com essa cara de tarado...
Pedro sorri e bota a mão direita no meio das pernas de Angélica, pressionando com o dedo médio o centro da calcinha. Angélica faz uma cara de prazer, e Pedro se divide entre dirigir e movimentar o dedo. Angélica abre um pouco mais as pernas e Pedro com um movimento digital enrola a calcinha no dedo médio e tenta puxar a calcinha de Angélica.
- Para, Pedro, olha a palhaçada... A gente já está chegando.
- Hum, é só chegar na ceia de Natal que você vira santinha, é?
Pedro faz mais força para puxar a calcinha, ao mesmo tempo que vai parando o carro em frente ao portão da casa de sua mãe. Angélica fecha as pernas e segura o braço direito de Pedro com uma das mãos. Com a outra, ela abre a porta.
- Parou a brincadeira. Já fez o que queria, não é?
Pedro sorri, olhando fixamente para o meio das pernas de Angélica, onde ainda trava uma luta para tirar a calcinha dela. Ouve um som de Angélica batendo a cabeça, provavelmente na saída do carro, o que a faz abrir subitamente as pernas e desmontar como que desmaiada para fora do carro, e no que tenta acompanhar a queda da amante, percebe um par de pernas do lado de fora do carro.
- Que isso, a brincadeira está só começando, seu filho da puta!
E com um cabo de enxada, Jorge acerta o meio da testa do irmão, que desmaia no carro.
*
Beto desistiu de pedir, desistiu de catar lixo (provavelmente, só amanhã as sobras das ceias estarão à disposição dele e dos urubus), e estava voltando para casa. No entanto, o espírito natalino tem dessas coisas, ao passar por uma rua escura, enxergou um ponto iluminado, onde um saco preto refletia uma luz acobreada, uma mistura de cores que ficou realmente lindo, e o vento que batia no saco, fazia-o tremular, e a luz movia-se, em um movimento belo que enchia os olhos de Beto de emoção.
Ele decidiu que esse seria o último saco a ser visto. Sim, tinha esperança, talvez ele pudesse levar algo para comerem em casa, mesmo que fosse pouco. Aproximou-se do saco de lixo, abriu-o lentamente, e percebeu que era pesado. Ao abrir por completo e trazer o interior do saco à luz alaranjada, percebeu que havia fartura: carne, diversos pedaços! Beto chorou. Cheirou para ver se estava muito podre, embora soubesse que mesmo podre, serviria para ao menos matar a fome de Graça e Letícia, e dele também. Pois nem podre estava, podia sentir o cheiro: fresquinha! As lágrimas escorriam por seu rosto, ele não conseguia conter-se: certamente um presente do céu! Agradecia mentalmente, não sabia se ao espírito de natal, ao açougueiro que havia colocado aquilo ali, ou à entidade a quem era enviado o despacho: agradecia a todos! Fechou a sacola e partiu para casa, agora revigorado, feliz, forte. Nada mais o incomodava.
Beto conseguiu a ceia de Natal da família!
*
Dona Noêmia, Fausto, Noeli, Guilherme, Renato e Elisa continuam esperando Pedro, o marido de Elisa, e Angélica, a esposa de Jorge. E Jorge está lavando uma enxada, sem pressa alguma.

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