sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Felicidade não se alcança com padrões

Viviam discutindo. Ele, um rapaz que achava que a felicidade seria alcançada se simplesmente seguisse os passos de um "Jogo da vida": nasce, estuda, se casa, tem filhos, o bode come uma orquídea rara, acha petróleo no quintal de casa, é julgado e se aposenta milionário. Ela, achando que a vida era um "Banco Imobiliário": você nasce, começa a pagar por tudo, e morre pobre, sem ter tempo de fazer o que queria. Por conta disso, ela era de aproveitar qualquer momento, enquanto ele queria crescer e ser o modelo de adulto que o mundo esperava.
Mais uma vez discutiam por alguma besteira. Cruzaram belos cenários, em um lindo pôr-do-sol, solenemente ignorados por conta do foco ser algo que sequer se lembram hoje em dia. Novamente, não se lembram por motivos diferentes: ele, por conta de um trauma causado após a discussão; ela... Bom, chegaremos a esse ponto, voltando um pouco para contar. Vamos a uma fala dele da última discussão, enquanto andavam:
- Mas nosso bode está lá no quintal, solto, e acabou comendo a orquídea rara do nosso vizinho! E onde você estava quando isso aconteceu?
Ela fica muda, pois não faz idéia de onde ou o que estava fazendo. Lendo, talvez, ouvindo música, talvez, cagando... enfim, qualquer coisa que não seja olhando para um bode no quintal. Após o silêncio urbano, que de silêncio só tem o nome, ela arrisca:
- Tá... Mas isso não vai mudar agora.
- Nada vai mudar agora, nada.
Ela não entendia o porquê de as pessoas esperarem mudanças sempre no sentido da "responsabilidade", de deixar o entretenimento de lado. Isso a cansava.
Caminharam, mudos, trocando poucas palavras, gradualmente cada vez mais ríspidas e menores.
Separaram-se no ponto de ônibus. Ele deu um beijo quase que obrigatório, porque a sociedade pedia - por serem um casal.
- Tchau - disse, seco, e embarcou em seu ônibus, que estava parado no ponto final.
Ela não conseguiu falar nada. Apenas seguiu seu caminho, olhando fixamente para pontos aleatórios da calçada. Uma folha. Uma guimba de cigarro. Dois pés aproximando-se e passando lateralmente por ela. Outra guimba de cigarro. Um copo de plástico rasgado em forma de florzinha. Dois pés aproximando-se, frontalmente a ela. Vai bater. Pararam.
- Passa a bolsa e o celular.
Ela levantou a cabeça. O ônibus que ele pegara, há uns cem metros atrás, fecha as portas para sair. Ela olha, sem saber o que fazer, ainda perdida em seus pensamentos, para o homem, baixinho, seu rosto com cicatriz, altamente clichê, e a mão na altura da cintura segurando o que parece ser uma arma de fogo.
- Tá surda? Passa a porra da bolsa e o celular!
Pensa o que tem na bolsa. Um livro, papéis amassados, provavelmente uma banana que deve estar há uns dois dias esquecida, modess, e mais algumas porcarias. O celular, foda-se. Todo mundo perde celular hoje em dia. Racionalmente, era entregar a bolsa e o celular e seguir o caminho, com olhar perdido, talvez um pouco mais perdido por conta da violência surpresa, mas nada que mudasse o mundo. Vida que segue. O ônibus do rapaz saiu do ponto. Mas ela enxerga nesse assalto cotidiano uma oportunidade, sim, uma visão empreendedora: onde parecer algo ruim, veja todos os lados e procure tomar vantagem da situação. Talvez essa era uma oportunidade única (única é forçar a barra... isso poderia acontecer muito mais vezes) para ela. Quem sabe esse sujeito não fora colocado em seu caminho por um motivo? Seria ele um anjo? Talvez ele pudesse ajudá-la a concretizar um antigo sonho que, ironicamente, só precisava de um gatilho (prum trum txx!) para ser realizado.
Ele tentou puxar a bolsa com a mão que não estava segurando o revólver. Ela decidiu que reagiria, e segurou a bolsa. Ele tentou puxar novamente, visivelmente irritado. Ela segurou de novo.
- Não vai levar nada, seu merda!
Ela gritou isso, consciente de estar provocando. Havia um sorriso surgindo em seu rosto, ao mesmo tempo em que passava em sua cabeça milhões de imagens de sua vida. Nem eram milhões, mas faz parecer mais dramático e mais poético do que dizer que ela travou as memórias de sua vida tentando lembrar da cena em que Patrick Swayze é morto em Ghost, e ela nem lembrava tão bem assim. Olhava atentamente para a mão com o revólver, quando ele foi puxado. O ônibus em que o rapaz estava passava próximo ao local do assalto nesse momento, em que ela, agarrada à bolsa, tentava ganhar o cabo de guerra do assaltante. Pessoas no ônibus levantaram de seus assentos para ver a ação.
- Ih, ali, a vagabundagem - disse um passageiro, chamando mais ainda a atenção dos passageiros.
O rapaz olhou, curioso de saber do que se tratava, e viu sua parceira agarrada à sua bolsa, viu o assaltante fazer um movimento brusco com um dos braços, e viu 3 clarões, seguidos de um som característico (metropolitanos sabem diferenciar bem sons de tiros e de fogos), seco.
- Eita! Mete o pé, piloto, que a coisa tá braba! - disse o mesmo passageiro que gritou acima, um narrador nato do caos urbano.
O rapaz fez sinal para descer. Olhava atônito a cena. Viu o líquido jorrar da cabeça da menina. Viu os tiros. Viu-a ser impulsionada para a cerca com os tiros. Mas ele não viu na hora foi o sorriso de satisfação dela. Finalmente, conseguia vencer a covardia que era empecilho para tonar o mundo mais agradável. Ao menos para ela, o único jeito de não ver mais com pessimismo o futuro: não tê-lo.
E os dois tiveram um mesmo pensamento, sincronia mesmo - depois que ela conseguiu livrar-se da cena de Ghost- : o "tchau" seco, o último beijo. Os dois quiseram mudar isso, mas o personagem do revólver estava cagando, aliás, ele nem tinha acesso aos pensamentos deles, como eu, narrador privilegiado, tenho. 
E todos foram felizes para sempre.

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