terça-feira, 30 de setembro de 2008

Tudo é mais fácil com um carro e dinheiro

Crianças pintam o muro da escola de branco. Dia ensolarado. As crianças estão amuadas, tristes. Algumas choram. E olha que a palmatória foi abolida faz tempo... Será frescura?
Era apenas uma garota de saco cheio de tudo. Vivia como podia, com certa mordomia até, considerando as péssimas condições de vida da maioria da população: tinha casa, família, roupas, computador... enfim, não tinha do que reclamar. Mas reclamava. A vida era uma merda, as pessoas não a compreendiam. A maldita imperfeição humana era inadmissível para ela; por que nasceu humana? Por que nasceu, afinal?
Cristina se isolava a todo momento, mesmo em locais movimentados. Na escola, na rua, em shows; em qualquer lugar ela era vista sozinha. Usava fones de ouvido para que não puxassem assunto, e fingia-se drogada quando vinham falar com ela. Sabia de toda a falsidade das pessoas, não queria falar com gente chata, gente que só a elogia, querendo sempre alguma coisa em troca. Humanidade. Esse era o motivo de sua revolta.
Sabia dirigir desde os 12 anos, quando pegava o carro do pai emprestado para dar voltas no sítio em que a família passava as férias. Tinha agora 18. Resolveu que era hora de comprar um carro. Não tinha dinheiro (não tinha trabalho fixo, e muito menos ganhava mesada), mas resolveu fazer um esforço. Fez um concurso para a área da saúde, como técnica administrativa. Passou, e esperou ser chamada.
Cristina tinha então 19 anos quando foi chamada para o trabalho. O salário era de quase mil reais, e ficou apenas 6 meses. Era dinheiro suficiente para comprar o carro, e foda-se que era concursada; não pensava em estabilidade, pois sabia que a qualquer momento sua vida poderia ser interrompida com uma bala perdida, algum acidente, um assalto, o que fosse. Vivia seus impulsos, e largou o emprego, causando revolta em seus pais. Foi chamada de irresponsável, vagabunda, aproveitadora e muito mais. Não se aborreceu.
Comprou o carro. Um Verona, usado, que custou R$ 4.500,00. Pela primeira vez pensou num futuro, nem que fosse um breve futuro, mas pensou: tinha R$ 1.500,00 ainda, e poderia ver-se livre dos seus pais. Moraria no carro, e quando acabasse o dinheiro, usaria o veículo como local para fazer programa, onde conseguiria dinheiro para o dia seguinte, e assim viveria. Maravilha!
Enquanto pensava nesse brilhante futuro, sem a presença de diploma ou de pessoas constantes em sua vida, ou seja, a maior parte do tempo sozinha, distraiu-se, e não viu a pobre senhora que saía, com sua longa saia, do culto de sua igreja, agarrada firmemente à Bíblia. A senhora olhou para o Verona de Cristina, e sorriu, como se pedisse que parasse apenas por um momento para que ela pudesse atravessar. Desculpe, senhora, Deus não atendeu a sua prece! O carro de Cristina acertou a senhora em cheio, quebrando-lhe as pernas no impacto, e fazendo-a bater com a cabeça no vidro, deixando um vermelho vivo como pintura, e rolando carro acima, caindo na pista logo atrás.
Cristina por um momento parou. Um pequeno grupo de pessoas olhava para a cena, incluindo pessoas da igreja, chocadas com o que acabara de acontecer. Não se moviam, ninguém teve força. Cristina, um pouco assustada, pois o choque a fez parar de pensar em suas possibilidades com o carro, olhava pelo retrovisor, e via o corpo da velha. E, após uns 30 segundos, contando do momento do impacto, Cristina engata a ré, ajusta o volante um pouco para o lado e acelera. PLOOSH! A cabeça da velha foi esmagada. Cristina agora sorria levemente, e viu um grupo das pessoas da igreja partindo em direção a seu carro. Agora o sorriso ganhou vida, nem parecia aquela menina triste de antes. Ela engatou a primeira, acelerou fundo, e pouco depois engatou a segunda. Não, Cristina não fugia da cena do crime. Ela partia em direção a uma segunda: ia de encontro ao pessoal da igreja, que agora começavam a se separar, cada um para um lado. Umas três pessoas não pensaram tão rápido e tiveram seus corpos arrastados pelo carro, desfigurando-os completamente.
Cristina agora gargalhava, e entrou em uma das ruas. A velocidade era alta, e pessoas que andavam na beira da rua ou na ponta da calçada, todas eram atropeladas por ela. Algumas somente se feriam, eram arremessadas longe. Outras não tinham a mesma sorte e paravam onde caiam. Crianças saindo de aula, uma mulher com um carrinho de bebê, uma senhora de andador (não, infelizmente não passou nenhuma senhora de andador), pseudo-atletas que corriam com roupinhas de corredor, ou que andavam de bicicleta. Todos foram vítima da ensandecida Cristina.
Mas após 10 minutos de brincadeira, um carro de polícia apareceu ao longe, com as sirenes ligadas. Era a hora de parar. Se entregaria? Não, preferia morrer do que aguentar uma vida na prisão. Não aguentava sua vida, cheia de conforto, por que aguentaria uma vida na qual seria a escória? Acelerou, tinha que escolher rápido o último alvo. Já tinha massacrado algumas pessoas de igreja, o que mais faltava? Olhou ao redor. Não tinha mais igreja. Merda! O carro da polícia se aproximava. Viu um ponto de ônibus cheio de crianças, em frente a um grande muro de escola. Seria ali. Que não fosse para acabar com um bando de bosta, que ao menos fosse algo bem comentado. Matar crianças dá IBOPE! Acelerou. Passava já dos 110 quilômetros por hora quando o carro subitamente virou para a esquerda, em direção ao ponto, onde as crianças, até meio segundo atrás, vibravam de alegria com um carro acelerando.
Vinte e duas crianças foram atingidas pelo carro. Algumas foram esmagadas contra o muro, outras com o impacto, realizaram o infantil sonho de voar. Vinte e cinco mortes. O número de feridos só foi maior porque alguém, antes de subir no ônibus, havia jogado um cigarro aceso, que foi o que ocasionou a explosão, quando a gasolina do tanque se espalhou. Uma explosão. O fogo dava seu show, luzes naturais sempre são boas para os fotógrafos. Dois policiais que tentavam resgatar algumas crianças, as que estavam em melhores condições, tiveram sua experiência de cremação vivos. E Cristina, que odiava a idéia de funeral e ritos mórbido-religiosos, ficaria feliz ao saber que ninguém lamentava sua morte, o que certamente aconteceria em seu funeral. Só lamentaria não ter usado o carro como motel.
Mas tudo em nome de uma boa morte!

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