segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Amapisso Fichiti

Essa história contada agora aconteceu bem perto de você, seja lá onde você mora. Sempre acontecem histórias assim. Os personagens mudam, os desfechos dão uma variada na forma, mas a estrutura é sempre a mesma. E hoje ficaremos com a história de Amapisso Fichiti, um rapaz azarado, que sofria as piores coisas na vida, sem saber o porquê. Mas todos têm seu dia de glória...

O dia estava radiante, com pássaros cantando e crianças jogando bola no meio da rua. Alheio a tudo isso estava um rapaz de casaco, cheio de espinhas no rosto, e com um boné escondendo o cabelo desgrenhado, de quem sequer havia penteado após acordar. Esse rapaz era Amapisso Fichiti. Tinha 16 anos, terminava o ensino médio e não tinha muitos amigos, embora tivesse colegas, com quem não conversava, a não ser na escola.
Desceu do ônibus e caminhava em direção a um banco da praça, coberto pela sombra de uma amendoeira. Devia ser o único garoto na praça a usar camisa, e de frio ainda por cima. Não se sentia incomodado com isso, mas se sentia incomodado dos outros olhando para ele. Podiam falar, zoar sua vestimenta, seus modos... mas não parar e ficar olhando, ou comentando. Mas Amapisso deixou a mochila de lado, abriu seu livro e começou a ler. Não queria ir para casa, pois lá arranjariam algo chato para ele fazer, ou ele se entregaria a um vício qualquer: TV, computador, video game, etc. Logo, ficar na praça, lendo, era o que tinha de melhor a fazer.
Estava entretido em sua leitura, quando ouviu ao longe um som bem familiar: uns pivetes vinham gritando, falando dele, com um jeitinho irritante. O jovem já estava acostumado com eles; bastava ignorá-los que eles logo iam embora. Infelizmente, aquele dia não foi assim. Os gritos iam chegando mais perto, cada vez mais ambientando Amapisso em uma selva urbana; ele focava o máximo de sua visão nas palavras, entrando em um semi-transe, enquanto os três moleques falavam ao seu redor coisas que não chegavam sequer ao inconsciente de Amapisso, que continuava firme na leitura. De repente um dos garotos dá um tapa no livro, que cai no chão. Amapisso Fichiti sente algo passando em sua mente, como se fosse um trem, mas era um pouco mais vermelho e mais escuro... e de alguma forma, mais líquido. Não sabe como essa imagem formara-se em sua cabeça, mas despertou da leitura, e enquanto os três pentelhos já tinham corrido para longe, rindo, o jovem autista pegava calmamente o livro do chão, e continuou a ler.
Vendo a abstração de Amapisso, os garotos voltaram, mas não chegaram tão perto. Pegaram amêndoas do chão e miraram o leitor solitário; erraram várias tentativas. Amapisso nem se deu conta que estava sendo alvejado, até que o mais novo dos moleques, que não devia ter nem 10 anos, acertou-lhe no meio da testa a amêndoa!
A imagem em movimento voltou à mente de Amapisso, e como num salto de compreensão da mensagem de seu inconsciente, ele sorriu, levantou, guardou o livro, e vestiu um disfarce verbal:
- Aí, louco! Ceissão foda, hein! Coé, parceiro, chegae preu bater um papo com geral... na moral! Na moral! Ceissão chatu pacaralhu, hein! Mas chegae que eu me amarrei na de vocês! Chegae, na moral!
Amapisso Fichiti odiava aquele linguajar, por ser simplório demais e irritante também. Mas falou assim porque já tinha planejado algo, e porque sabia que apenas falando daquele jeito poderia ganhar respeito e confiança dos moleques (algo que não dava a mínima).
Os garotos se aproximaram, ainda rindo, meio receosos, mas o sorriso, aparentemente autêntico, no rosto de Amapisso, não deixava dúvidas: o rapaz realmente gostava dos três! Ele estendeu a mão para dar um cumprimento mais babaca que conhecia, para parecer legal. Os três o cumprimentaram.
- Aí, tô com um video game na moral lá em casa. Geral tá de bobeira, não tá? Bora lá jogar! Aí vocês deixam de me pentelhar, né, porra! Há há.. todo dia, porra!
E com um papo de pedófilo, arrastou os três garotos para sua casa. Chegando em casa, pediu para eles esperarem no portão um pouco, pois ia avisar os pais que ia entrar com amigos. Voltou com uma caixa de Play Station 2, e viu os olhos dos garotos brilhando. Mas logo quebrou o encanto:
- Pô, aqui, pra tu ver que eu não tô mentindo... Tá aqui o jogo, na moral... mas meu pai falou que eu tenho que fazer uma parada rapidinho lá em cima, no terraço, parada de obra. Só fazer tipo um banco de concreto. Se vocês quiserem esperar aqui... mas se quiser entrar pra ajudar, aí a gente joga mais rápido...
Os garotos se olharam, e toparam ajudar, afinal , não tinha nada mais para fazer, e já tinham zoado tanto o garoto, que era o mínimo que podiam fazer para retribuir.
Amapisso Fichiti tinha falado aos pais que estava entrando com um pessoal que ia ajudá-lo a fazer um quartinho para ele no terraço. Tinha um saco de cimento fechado ainda, da obra que já tinha terminado, e a família tinha dado a ele um espaço para fazer um quartinho, para ficar isolado quando quisesse. Simples e compreensivo assim. Ele pegou a enxada e passou para o terraço com os três garotos.
Ao subir a escada, mencionou ter esquecido o saco de cimento. Pediu aos dois menores para pegar, lá embaixo, e disse onde estava. Enquanto eles desciam, com a enxada na mão, Amapisso pediu para o maiorzinho dos três, que devia ter cerca de 15 anos, pegar um balde d'água, e apontou para trás do garoto. O garoto se virou e ficou olhando, procurando o balde. Sentiu então um cutucão, seguido de uma sensação de calor escorrendo-lhe a face. O cutucão foi dado com a ponta da enxada, fazendo o ferro penetrar no crânio do menino.
Amapisso Fichiti sentia-se parcialmente realizado, mas precisava dar um jeito naquilo antes que os outros vissem, e não podiam sequer ver o sangue. Enquanto o garoto ainda tentava agonizar, mas totalmente sem coordenação motora para tal, Amapisso tacou o garoto dentro da caixa d'água e fechou bem a tampa, para os outros não desconfiarem. As poucas gotas de sangue que ficaram no chão, ele esfregou com o tênis, fazendo ficar apenas um borrão. Ouvia agora os dois garotos subindo com o saco de cimento. Pensava em um modo diferente de matá-los. O ideal seria que eles morresem afogados em uma piscina de água fervente. Ahhh... o pensamento deliciava-o: a pior forma de morte, uma pergunta que o perseguia há tempos, até que chegou à conclusão de que morrer queimando e morrer afogado seriam as duas piores mortes. E a única forma de juntar isso tudo seria tacar um corpo com um peso para fundar, em uma banheira, piscina ou tanque com água fervente; a dor seria insuportável até os últimos momentos.
Mas não era hora para divagação, e sim para a praticidade. Correu para a escada, e falou para que deixasse com ele um dos lados do saco, que ele carregaria com um dos garotos, enquanto isso, o outro desceria para pegar um balde de água. Assim foi feito, e quando Amapisso e um dos garotos colocaram o saco no terraço, o menino logo perguntou pelo outro, que ficara ajudando-o; Amapisso falou no ouvido dele que ele estava se escondendo, e para ele fingir que nem ligava. O garoto seguiu seu conselho, sorrindo, e caminhou em direção a uma das paredes do terraço. Eis que Amapisso, que se encontrava um pouco longe do menino, tomou um impulso e correu em direção a ele; o garoto se encontrava a poucos centímetros da parede, quando o assassino incubado libertou-se de novo e jogou-se, com o ombro para cima do garoto, a toda velocidade capaz de alcançar naquele curto espaço. Ao ouvir o barulho de correria, o menino virou-se, e quando olhou, o ombro de Amapisso estava já batendo em sua cara, esmagando-a contra a parede.
Agora não tinha como esconder, mas também, só faltava um. Seu lado direito do corpo, estava todo ensangüentado; e a parede parecia salpicada de tinta vermelha. Sem contar, óbvio, de um corpo pequeno, com uma cabeça deformada, deitado no chão, com um pouco do cérebro vazando.
Precisava pensar rápido. As vibrações da escada de ferro aumentavam, a terceira vítima estava chegando. Como seria? Precisava de criatividade. Não mataria duas pessoas diferentes da mesma maneira, não! Não podia! Isso era render-se à falta de criatividade, à objetividade exigida pela sociedade. Olhou para a caixa d’água, dentro da qual estava o corpo de um dos garotos, e decidiu: já que não podia ser afogado em água fervente, seria ao menos afogado.
Amapisso Fichiti abaixou-se na parede, ao lado da entrada do terraço, e assim que viu os pés do garoto pisarem o chão, agarrou-o pela cintura e correu, segurando-o em seus braços, para bater contra a caixa d’água. Com a batida, o garoto, sem entender nada, deu um berro, e Amapisso lembrou-se que tinha esquecido de pensar nesse detalhe. Com uma mão deu um soco certeiro no rosto do moleque, e em seguida tapou-lhe a boca, enquanto com a outra mão destampava a versão industrial e ocidental do Rio Ganges, e nem ligou para os arranhões nervosos dados pela vítima. Amapisso, com as duas mãos livres, virou a cabeça do garoto para a caixa d’água, e foi submergindo-a lentamente, para ter certeza que o pobre rapaz veria o corpo de seu amigo boiando na água (agora já muito misturada com sangue). Afundou completamente a cabeça dele na água, e sorriu, realmente ficou feliz ao ver as bolhas vermelhas estourarem na superfície. Outro detalhe que o deixou animado foi observar os braços da vítima batendo e tentando se agarrar em qualquer lugar, uma luta pela vida; mas estava disposto a fazê-la ser em vão. Lentamente, os movimentos pararam, mas Amapisso continuou lá por mais uns dois minutos, segurando o pescoço submerso, firmemente.
Agora a parte dura estava feita, mas Amapisso Fichiti não largava trabalhos incompletos: pôs-se a picotar, com a enxada, os corpos dos rapazes. E em menos de duas horas, sem utilização de tijolos, foram feitos 5 bancos de concreto no terraço. Alguns mais longos e baixos, outros um pouco mais alto. Tudo dependia da estrutura utilizada para firmar o concreto: pernas, braços, tronco, cabeça... Usou e abusou de sua criatividade, e nunca gostou tanto de trabalhar de pedreiro. Estava orgulhoso e sorridente, feliz de verdade.
Ao descer, no fim da tarde, os pais perguntaram pelos pedreiros que ele chamou para fazer os serviços no terraço, e Amapisso disse que todos já haviam ido embora. Ligou seu vídeo game na TV e perdeu horas de seu tempo com o jogo. E o tédio já havia voltado horas depois de se sentir totalmente satisfeito. E sabia, que desse dia em diante, nunca mais poderia deixar de sentir aquele gosto que o fascinava. E assim, na verdade, começa a história de Amapisso Fichiti, que sempre arruma novas obras em seu dia-a-dia; é a construção de um mundo melhor.

Nenhum comentário: