domingo, 25 de dezembro de 2016

Prioridades

Era madrugada da véspera de natal. Podia escrever Natal, mas isso é dar uma importância muito grande a uma data conhecida por mesa farta de comida, presentes, mas nada a ver com nascimento ou natalidade - é verdade que alguns cristãos até fingem ter a data a ver com o nascimento de Jesus, mas isso nunca foi nem nunca será confirmado, e eles mesmo, a ver pela cultura, preferem comemorar muito mais a morte, que foi quando o nazareno ganhou fama e importância para a humanidade, do que o nascimento, quando era apenas mais um bebê com cara de joelho (embora nascido num estábulo, mas meninos e meninas nascidas em lugares ruins tem a ver com pobreza, não com religiões). Mas como disse, era véspera de natal, e nosso protagonista, um ateu convicto e descrente de muita coisa, mas também crente em outras que não o colocavam o rótulo de crente. Zombeteiro, sem ter o que fazer, fez um post em seu facebook, com fotos de um livro de bruxaria e demônios, dizendo estar preparando o ritual natalino. Nada de importante, gerou algumas risadas, algumas curtidas, mas não mudou em nada o natal, ninguém passou a fazer uma missa satânica no dia 25 por causa de sua piada. Mas como era o primeiro natal que chamaria pessoas para passar em sua casa, recém-casado com a namorada de oito anos, ele queria fazer uma graça com os elementos anticristãos que possuía.
Quando acordou, ainda véspera de natal, checou o facebook: muitas curtidas em seu post pseudo-satânico, ficou satisfeito, parecia até que estava fazendo algo de realmente útil contra a cultura cristã, mas na verdade não bastava de mais uma gracinha que agradava alguns amigos. Feliz da vida, passou aos preparativos para a festa de mais tarde - pois sim, era ateu, mas não dispensava uma boa mesa farta, não importa se a comemoração era por deuses ou por diabos. Desfiou uma arraia e começou a fazer hamburger do exótico peixe: misturou queijo, salsinha, ovo e sal na arraia desfiada, e usando a mão, modelou os pequenos discos. Quando estava colocando-os em um tabuleiro, para congelar antes de assar, sentiu uma pontada no peito; uma dor lancinante (pois apenas lancinante passa a intensidade de uma dor dessas que não sabemos descrever, mas temos a consciência de que se escrevermos lancinante, mesmo sem a maior parte das pessoas saber o significado da palavra, alcançaremos o objetivo de descrever o quão forte foi a dor) subiu-lhe até as narinas, fazendo levar a mão ao lado esquerdo do tórax. Cansou, apoiou-se na cadeira, esbugalhou os olhos e buscou fôlego para continuar no artesanato gourmet. Voltou e tentou apressadamente terminar os dois montinhos de mistura, enquanto continuava a sentir as pontadas, e quando terminou o último - de forma mambembe, diga-se de passagem, ficou mais parecendo uma gota de chuva deformada do que um pequeno disco -, já não enxergava quase nada, uma tela preta havia quase que por completo substituído sua visão. Impulsionado pela dor que ditava o ritmo de seu caminhar, subiu as escadas para se jogar em sua cama. Ao entrar em seu quarto, passou pela mulher, que limpava o banheiro, e cuspiu desesperado algumas palavras para informar o mal que lhe acometera.
- Tô passando mal... deitar...
Encaminhou-se para a cama. A mulher veio atrás, desesperada, pois o havia visto, suando feito um porco que está prestes a ser abatido e sente o cheiro de sangue do companheiro de cela. Ela estava muito preocupada, pois ele estava realmente molhado de suor. Ela o acompanhou e gritou, alucinada:
- Na cama nãaaaaao!!! Eu acabei de trocar os lençóis!!!
Ele, perdido e com o pensamento em três mil coisas que não o quão sujo e suado ele estava, muito menos o quão limpo e novo era o lençol, ficou parado, aturdido, sem saber o que fazer. A mulher apontou-lhe um pequeno espaço de uma cama de solteiro ao lado da cama de casal, entulhada de objetos que não tinham onde ser colocados, para a casa parecer arrumada ao menos por um dia. Ele olhou e percebeu que não cabia no espaço que lhe estava sendo destinado, mas não havia jeito, melhor morrer sossegado encolhido em um canto do que com uma megera lhe enchendo os últimos momentos onde poderia pensar em oito mil coisas, entre desenhos de infância, músicas e filmes que o marcaram e mulheres a quem já homenageou na punheta desde que tinha seus sete, oito anos (era um grande rol para passar em microframes), mas teria tais memórias interrompidas por "tá sujando tudo!", "você não me ajuda", "vai lavar essa merda", etc. Caiu na cama de solteiro.
A cada respiração, seu peito parecia comprimir-se e a dor agora passava das narinas, chegava-lhe aos olhos. A namorada que casou-se com ele já havia voltado tranqüila para o banheiro, agora que a limpeza do lençol estava garantida. E o nosso protagonista, conformado com o que lhe passava, permitiu-se ter o sossego dos flashes do fim de sua vida. Em um desses momentos que duram menos que centésimos de segundos, uma das lembranças recentes foi o post da madrugada, o tal das fotos satânicas. Interromperam-se as memórias, um link havia sido feito e tomou uma decisão: não podia morrer! Não, não se achava forte de saúde, nem havia um objetivo de vida tão forte assim para manter o pensamento positivo, mas era algo pessoal: o post satânico na véspera do natal poderia ser usado como prova de que Deus (com D maiúsculo para que todos saibam de qual boi estou falando) o havia castigado; e só de pensar que, ele blasfemava quase os 365 dias do ano, e não, uma blasfêmia no dia de sua morte não podia ser utilizada para espalhar medo e boatos sobre blasfêmias e zoeiras. Ele sabia que isso nada tinha a ver: o fato de comer muita gordura e nunca fazer exame de sangue sim. Mas não, os crentes de religiões não querem saber de evidências reais; eles querem boas histórias que podem assustar o povo e parecer verídicas; querem fazer ligações entre coincidências de certa forma até engraçadas, para espalhar o pânico de seu deus (o Deus, o boi cristão...), o vingativo e cruel que pune quem faz humor com uma religião qualquer entre sei lá quantas mil. Definitivamente não podia morrer. Não hoje, enquanto aquele post estava sendo curtido e seria usado contra ele. Esforçou-se e lançou um grito de dor para a namorada (com quem casou-se), e pediu para ir ao hospital.
Foi, e aqui acontecem coisas totalmente desinteressantes à história, e podemos encurtar com a máxima: ele sobreviveu. Os memes anti-religiosos podem continuar sem medo, pessoal. Graças ao nosso mártir, o protagonista sem nome.
Que seja louvado.

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