quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Maldita greed! Parte 2

Para quem acompanhou, ok. Caso esteja lendo pela primeira vez, leia incialmente a parte 1.

Pedro não continha sua felicidade, e contava os dias para O dia. Faltavam ainda duas semanas, e ele teria que viajar a São Paulo (por conta da rede televisiva). Já havia combinado: seu pai seria o responsável por ele - afinal, tinha apenas 11 anos, e não poderia viajar sozinho - e, ao mesmo tempo, seu parceiro no jogo. Mas a regra estava dita: caso ganhassem e tivessem direito a um minuto de compras, livre, Pedro seria o corredor. O pai até tentou argumentar, dizendo que por ser maior, seus passos eram maiores, e os braços poderiam alcançar mais produtos, mas vendo a violenta resposta do filho, desesperado por tentarem roubar dele o minuto de sua vida, o pai resolveu deixar prá lá; nem sabia se iam ganhar, afinal, para que criar caso - e no final das contas, achava bonito o filho ter essa ganância (veio a palavra que deveria ter vindo ontem!) de querer correr, literalmente, atrás de suas próprias coisas.
Pularei toda a dramaticidade da saída de casa, a despedida de seus parentes - porque sempre que alguém aparece na TV, seus parentes fazem questão de visitar a pessoa, não importando se ela apareceu dando uma entrevista sobre como descobriu a cura do câncer ou se foi na pegadinha do João Kleber -, a torcida por ele (embora na época não fizessem camisas com o rosto da pessoa; era uma época um pouco mais sensata), essas coisas menos importantes. Pedro ignorava todas essas falas, falava "obrigado", mas por dentro pensava "vai tomar no cu, não gosto de você!" Bom, o importante é que ele chegou em São Paulo com o pai, ficaram em um hotel - e ele sentia-se um homem, já que o pai estava lá por causa dele! Ele estava no comando! O programa disponibilizou uma merreca para ele gastar enquanto estivesse no hotel com o pai (os dois ficaram por dois dias lá, e a merreca rendeu, pois Pedro recusava-se a gastar, sabendo que poderia pegar tudo de graça no seu minuto de glória).

O grande dia havia chegado. Pedro passou boa parte da noite anterior em claro, e antes disso, conversou bastante com o pai, deu conselhos, passou a ele toda a sua estratégia já traçada para ganhar o programa - e como telespectador assíduo, sabia realmente alguns truques. Estava preparadíssimo, e foi ganhando, na parte do quiz, muitos pontos e, justiça seja feita, seu pai, um sujeito que sabia muitas curiosidades dos mais diversos temas, o ajudou bastante nessa parte.
Na metade do programa, já estava claro: Pedro e o pai ganhariam, certamente, mesmo que fossem muito mal daquela parte em diante. Pedro seguia concentrado, sem contar vantagem; ficaria feliz apenas na hora em que fosse anunciada sua vitória. E com pontuação de 4.800 para Pedro e o pai, 2.100 para a dupla que estava mais próxima, dali para frente, toda pergunta era decisiva: mais uma resposta certa de Pedro e ele ganhava seu minuto! E o apresentador fez uma pergunta de desenho, tema que Pedro, por ser criança, levava uma vantagem tremenda. Pela primeira vez, ele deu um sorriso confiante, como quem sabe que a vitória é sua; deixou a autoconfiança dominar seu corpo, e ouviu a pergunta:
- Que animal é o personagem "Leôncio", da turma do Pica-Pau?
Pedro pensou rapidamente, e nem olhou para o pai, para perguntar. Deixou um pouco a pressa de lado, imaginando que os competidores não faziam ideia de quem era Pica-Pau, sequer Leôncio. A luz vermelha, indicando que já podia bater no botão, para ganhar o direito da resposta, acendeu e Pedro foi calmamente bater para responder. Bateu, mas sentiu como se tivesse ouvido o barulho da sirene milissegundos antes de realmente bater. E no que foi responder, ouviu o apresentador:
- Pode responder, Paula!
Paula??? Sim, Pedro perdera a chance de acabar com aquele jogo naquela pergunta, a qual ele sabia a resposta ("leão-marinho, é óbvio!"), e Paula, infelizmente também sabia. Mas agora, a dupla de Paula contava com apenas 2.200 pontos, e Pedro pensou alto (o pai chegou a ouvir, inclusive):
- Agora acabou a brincadeira, vou jogar sério agora!
A próxima pergunta começou e Pedro desanimou na mesma hora.
- Qual o nome do autor do livro 1984?
Embora gostasse de ler, não sabia nomes de autor algum! Alguns livros ele sequer lembrava o nome... Mas o pai deu dois toques no ombro de Pedro, e isso o fez sorrir, para logo depois conter o sorriso - pois viu que a confiança excessiva o levou a um relaxamento que poderia tirar o seu precioso minuto, o que o faria perder, psicologicamente, mais de dois anos de vida - , pois sabia que esse era o código para seu pai dizer que sabia uma resposta.
Pedro semicerrou os olhos, e era como se tivesse amarrado uma fita na cabeça, tipo o Rambo; ele colocou a mão direita atrás de sua orelha direita, e cheio de raiva e esperança, no que foi permitido bater no botão, foi com toda a fome do mundo! Ele bateu no botão, mas como estava com pressa, parece que bateu meio de lado, e não computou a batida dele. Quando ele percebeu que já havia um tempo da batida e nenhuma sirene soou, faltou um pouco de ar em sua garganta, e tentando desesperadamente bater no botão antes de outra dupla, ele bateu de novo, e de novo, e de novo, até que viu as luzes vermelhas rodando, e ainda assim não tinha a certeza que era a sua batida computada; sentia-se em um complô!
- Calma, calma, Pedrão! Já foi pra você, essa! - disse o apresentador, rindo, e quando Pedro olhou para os lados, nenhuma das outras duplas havia sequer levantado a mão. Como era bom viver em um país de burros, pensou Pedro. E ainda teve tempo de pensar que orgulhava-se de seu pai, e que gostaria de ser como ele no futuro.
Pedro agora olhou para o pai, trêmulo e quase chorando. Não sabia o porquê de estar quase chorando, mas percebeu que olhava para o pai com água nos olhos, esperançoso, e como um cão abandonado pede a um passante que realize seu sonho - no caso do cão, um lar com amor; no caso de Pedro, um minuto no supermercado.
- George Orwell - disse o pai, firme.
Ele passou a mão na cabeça de Pedro, e o apresentador nem havia dito ainda que essa resposta estava correta, mas ele sentiu a segurança do pai, e relaxou, e as lágrimas começaram a correr por seu rosto.
- Correto! Vocês despacharam as duas duplas com pouco mais da metade do programa! Então, ganharão um extra de um minuto na hora do supermercado! Ou seja, terão não um, mas DOIS MINUTOS para fazerem a compra. E podem decidir se haverá troca de participante, ou se apenas um vai fazer realmente...
A mesma segurança que o pai havia demonstrado com o passar de mãos na cabeça do filho, Pedro demonstrou ao olhar para o pai. O olhar dizia "deixa comigo!" E como haviam feito o trato já, o pai deixou tranqüilamente.
O momento havia chegado. Pedro estava tranqüilo e animadíssimo - tinha medo até que alguma merda fosse acontecer, pois sempre que se cria uma expectativa exacerbada sobre algo, tende a chegar logo depois uma decepção sem fim. O apresentador entregou a ele os aparatos (capacete, joelheira, ombreira), o carrinho de supermercados e explicou as regras: basicamente ele não poderia deixar cair mais do que 20 produtos no chão, ou a gincana terminaria, independente do tempo que faltasse ainda.
3, 2, 1, VAI!
Pedro correu com o carrinho, e estrategicamente a primeira fila que estava era a dos biscoitos e variados (cereais, chocolate, bombons, etc). Colocou muita coisa no carrinho, e partiu para a parte de bolos, onde pegou leite condensado, creme de leite, massa de bolo, leite em pó, coisas que sabia que sua mãe sempre reclamava de estarem caras. Partiu para a seção de queijos, e o carrinho não estava nem pela metade ainda: pegou os queijos mais caros (ele adorava queijo, e como todo bom gordinho - ou ex-gordinho -, ficava vendo preços no supermercado), e aqueles com as embalagens mais bonitas também. O apresentador anunciou bem alto que tinham passado 30 segundos. Ele pensou que ainda tinha tempo a beça, mas não parou de correr, pensando que quando o carrinho estivesse terminando, correria para a parte de eletrônicos e pegaria uma TV, um som, talvez um VHS, o que tivesse de bom lá (e equilibraria no topo do carrinho, já cheio de compras, ele imaginava). Passou pela parte de grãos, e como não era egoísta, gastou um tempo relativo pegando uns cinco sacos de arroz e uns outros tantos de feijão, lentilha, várias coisas que ele não identificava, mas imaginava fazer parte de uma alimentação básica. Logo em seguida vinha a parte de condimentos, e encheu um pouco mais de maionese, catchup, mostarda, molhos de salada, molho de pimenta (que ele achava ser, respectivamente, variantes de maionese e de catchup, afinal, não tinha tempo para ler os rótulos). O carrinho encontrava-se quase que completo, e ele viu um pouco mais à frente os refrigerantes: pegou umas seis garrafas de refrigerante, e gastou um tempo médio para acomodá-las no carrinho, para que não atrapalhassem os eletrônicos mais tarde, e pegou algumas dezenas de garrafinhas de suco, que ele tanto gostava. Quando partia para os eletrônicos, viu umas garrafas de vidro bonitas (de vinho), e embora nem soubessem do que se tratava, imaginou serem caras, e por isso, queria. Pegou.
O apresentador acabava de anunciar que restavam apenas 30 segundos agora ("um minuto e meio até que foi um tempo bacana" - pensou Pedro), e correu para pegar a TV, que ele via no final do corredor em que estava, à esquerda. Ao chegar lá, percebeu o peso da TV, e com certa dificuldade colocou-a em seu carrinho (seu mundo, no momento). Acomodou tão bem, para que pudesse correr três colunas adiante, onde estava o aparelho de som. Sabia que tinha no carrinho mais do que tudo que precisava, e ficando parado, teria certeza que nada cairia; mas ele queria mais! Ele queria aquilo tudo e mais o som! No que estava correndo, ouviu o pessoal falando "10, 9...", em contagem regressiva, e correu ainda mais, tomando cuidado para a TV, presa na parte em que se colocavam bebês nos carrinhos, não caísse. "6, 5..." ele percebeu que talvez não chegasse a tempo para pegar o som, mas estava tão perto... em três segundos poderia jogar de qualquer forma para dentro do carrinho que seria dele. Acelerou de forma sobrehumana (ainda mais para uma criança), e quando ouvia "3,2...", e percebia que ainda não chegara ao som, de repente não ouviu mais o um e o zero. Os corredores do supermercados, antes brancos e iluminados por lâmpadas frias, agora turvaram, e só conseguia enxergar os produtos levemente iluminados e, no lugar do piso claro, tudo agora era preto, e conseguia enxergar as colunas e fileiras demarcadas por luzes neon coloridas (vermelha, azul, amarela, diversas cores). Continuou correndo e resolveu que pegaria o som, e se não valesse, eles simplesmente não contariam aquilo. Foi adiante, pegou, e continou sem ouvir o zero, nem ninguém chamando ele. Pedro estranhou, mas decidiu que não fazia sentido ele ficar ali, parado. Continuou e pegou um VHS, e nada ainda de o chamarem (ele sequer conseguia enxergar alguém ali...); voltou para pegar mais leite condensado, mais biscoitos, e nada. Desconfiava que já estava há mais de 3 minutos naquilo, e começou a parar de correr, passou a andar. E realmente, não tinha mais ninguém ali. Nem o pai, nem o apresentador, nem as câmeras... pensou que talvez, no esforço final de tentar pegar o som, tivesse desmaiado, e aquilo fosse uma viagem enquanto ele estava deitado no chão, com o nariz sangrando. Passados uns dez minutos, desconfiou que não era.

Ficou com fome. Comeu biscoitos. Deitou, gritou pelas pessoas; ninguém respondeu. Dormiu, acordou com fome, comeu queijo, bebeu refrigerante, tomou sorvete, comeu torta congelada. Começou a perceber que a vida lá seria muito mais interessante do que na sua casa: ele tinha tudo o que queria lá! E assim passou alguns dias. Ou horas? Ou meses? Ele nem ligava para os relógios que tinham lá, nem era neurótico de controlar o tempo... E as TVs, obviamente, pegavam apenas um canal: o "guerra de mosquitos", deixando-o sem noção temporal; só serviam mesmo para jogar videogame e ver os filmes em VHS, e felizmente, havia um catálogo legal naquele lugar. Passado muito tempo (não contabilizado por Pedro), ele começou a perceber que, embora tivesse tudo o que quisesse de graça, não tinha uma coisa: relacionamentos humanos. Não tinha a família, não tinha amigos, ninguém. Notou como dificilmente falam que é bom ter amigos nas propagandas, ou família, apenas os produtos são necessários. Ele percebia que talvez ter todos os produtos que queria não o deixava feliz para sempre - momentaneamente, ele assumia, ficava muito feliz, mas no fim das contas, sentia saudade das pessoas. E uma coisa mais o perturbava: a falta de mulher, de sensualidade. Começava a pensar como homem, e na adolescência, a falta de algo pornográfico é algo bastante sentido. Mas isso durou só até ele, ao tentar sair caminhando no total escuro, onde as luzes neon não alcançavam mais, encontrar inesperadamente um local escondido, onde havia uma sex shop.
Desde então, não mais sentiu saudade da família. Nem de amigos. Passou o resto de sua vida em uma dimensão aleatória, com bucetas de látex, óleos lubrificantes, masturbando-se e comendo queijo, jogando catupiry nas bucetinhas e gozando.
E assim foi, até morrer. E morreu feliz!

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