sábado, 12 de maio de 2018

O celular do ladrão

Rio de Janeiro, Saara, sexta-feira anterior ao dia das mães.
Essa porra tá cheia, acabei me atrasando pra uma reunião. Ando rápido, quase correndo, para que o atraso seja menos sentido.
Passando pela rua dos Andradas, tenho a idéia: vou cortar caminho pelo largo de São Francisco, porque a Uruguaiana tá cheia de gente caminhando e travando a rua, procurando um presente para as mamães. Beleza, boa idéia a minha.
Caminho, com pressa, e no espaço escuro da praça, uma pessoa caminha ao meu lado. Menos mal, duas pessoas caminhando juntas podem afastar possíveis assaltos. O pensamento é esse, isso é Rio de Janeiro. Mas talvez esse meu pensamento tenha sido ingênuo demais. O rapaz ao meu lado puxou papo:
- Aê, playboy!
Ignorei, já que não me considero playboy e não sou obrigado a agüentar desconhecidos me chamando de playboy.
- Perdeu, playboy. Passa o celular, porra!
Puta que pariu. Foi uma falha de comunicação da minha parte. O cara não tava procurando refúgio de assalto; ele era o meio. E eu entendi a mensagem. Parei e virei para encará-lo.
- Pô, cara, faz isso não. Tô cheio de pressa e só tenho esse celular pra falar com os outros, pô.
Ele moveu uma mão na altura da cintura, por dentro da camisa. Não dava para ver nada, e ele podia estar tanto com uma arma de verdade quanto com uma daquelas galinhas de borracha que fazem um barulho engraçado, que eu não ia saber. Sou cego a noite, numa praça mal iluminada, então...
- Meu irmão, tá maluco? Quer morrer, porra???
Levantei instintivamente as mãos, me rendendo, e botei em seguida a mão esquerda no bolso para pegar o celular. Lá estava a carteira, e nem é importante, mas contarei assim mesmo. Eu costumo levar a carteira no bolso direito da bermuda (ou calça), e o celular no bolso esquerdo, mas a minha bermuda estava com o bolso esquerdo furado, um furo tão grande que se eu boto o celular lá, ele cai.
Após essa explicação esdrúxula, tateei o bolso esquerdo, vi que lá estava a carteira, e passei para o bolso direito, onde estava o celular. Entre a mão ir de um bolso a outro, lembrei do bolso furado e soltei um "ahh...", lembrando-me do bolso trocado do aparelho.
Ao pegar o celular, entreguei e fiquei no vácuo: o cara não pegou.
- Tomá no cu, mermão! Tá pensando que é malandro, seu filha da puta!
Não entendi. Nem a reação do ladrão e nem essa mania de a gente falar "filha da puta", mesmo pra homens, quando deveria ser "filho da puta". Não expus a minha última questã.
- Que foi, cara? Toma o celular!
Ele balançou ainda mais o braço que estava com algo na cintura, ameaçando.
- Eu quero o SEU celular!
Ele deu uma intensidade tão grande no "seu", que pareceu me chamar de ladrão, como se aquele aparelho não fosse o meu.
- Esse é o meu celular, cara!
Tomei um empurrão.
- Tá de sacanagem? Quer me dar o celular "do ladrão"???
Tela azul. Eu era o assaltado. Na minha mente, ele era o ladrão. O que seria o "celular do ladrão"? Seria o dele. O meu quando eu passasse para ele, seria dele. Tentei entender a piada.
Não consegui.
- Ué, o ladrão é você. Esse celular é meu. Depois vai ser seu. Do ladrão. Não é?
Ele agarrou meu pescoço. Era um pouco mais alto do que eu. Falou baixinho.
- Playboy, aqui tá tudo escuro, ninguém tá vendo nada. Um monte de parceiro meu aqui. Se você tentar fazer graça, vai ficar por aqui mesmo. E só vão te achar amanhã de manhã. Para de graça, enfia essa porra de celular do ladrão no teu cu e me passa o celular que você realmente usa.
CARALHO! O "celular do ladrão" é o aparelho zoadaço que o pessoal carrega só para, no caso de ser assaltado, não perder o oficial, entregando o outro. Um tipo de bode expiatório, mas sem fazer béeeee. Aliás, pode até fazer béeee, você pode personalizar o toque, né?
O cara achou que meu aquele telefone era zoado demais para ser meu. Não entendi o porquê. Insisti.
- Cara, esse é o meu celular, o que eu uso! Pode ver aqui, tem bom dia que eu recebi hoje, no whatsapp!
Tentei lembrar de quem me manda mensagem de bom dia. Meu pai, certamente, no grupo da família, mas a essa hora já devia estar cheio de papos nada a ver, e não queria expor. Abri o de um amigo, que sempre manda de zoeira. Os olhos do assaltante estavam vidrados no celular. Quando abri a conversa com o amigo, memes do Fabio Assunção dizendo que hoje era sexta-feira, fizeram o maluco cuspir minha tela, já fodida.
- Hahahaha. Poorra! Hoje é dia de pó legal, né? Caralho, tu usa essa porra mermo, mané! Hahahaha puta que pariu...
Ele distanciou-se um pouco, rindo. Voltou pra perto de mim.
- Guarda essa porra, guarda essa porra... Aí, playboy, vou te falar duas paradas...
Eu já estava meio rindo, aquele riso meio nervoso, mas rindo. Falei mais para quebrar o monólogo dele, pra fingir que estava interagindo.
- Coé, cara...
Ele continuou.
- Uma, que se eu tô com uma arma aqui, você morria...
E tirou finalmente a mão que estava sempre na cintura, e mostrou uma latinha de Antarctica de 269ml, toda amassada. Essa era a arma dele.
- E a outra... é que se eu tivesse metido uns celulares hoje, eu ia te dar um. Puta que pariu, tu é muito escroto andando com essa porra...
Ele se afastou definitivamente, rindo pra caralho, e eu segui meu caminho para a reunião.
Cheguei atrasado, mas contei o ocorrido e ninguém lembrou mais do atraso.
O Rio de Janeiro me surpreende a cada dia.



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