sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Polícia Piraquê

 Polícia: Ganha pouco porque extorque muito Ou extorque muito porque ganha pouco?








quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Entrevista com Mojica, outubro de 2008

No final de 2008, enquanto fazia minha monografia sobre a personagem Zé do Caixão, tive a oportunidade de bater um papo rápido com o Mojica, no salão do hotel em que estava hospedado, no Flamengo.
Em um papo meio nervoso, por estar diante de uma entidade do cinema brasileiro, e precisar preencher algumas lacunas que ficam confusas em sua biografia, saí satisfeito de conversar com o Mojica. Um grande contador de histórias. Transcrevi abaixo a gravação que fiz no dia.
Um grande salve ao grande diretor/ator! Fez história e influenciou muita gente no cinema (no Brasil e no mundo)!

Entrevista Exclusiva com José Mojica Marins, Outubro de 2008.

Eu: Eu queria que você falasse um pouco sobre a temática religiosa, já que você começou com um filme sobre um terreiro de macumba, que é o "A Encruzilhada da Perdição e Feitiçaria". Pra você, o tema "religião" é importante?
Mojica: É... eu acho que a formação católica minha foi muito grande, desde criança. E eu por ser criado dentro de um cinema, nos fundos, logo aos 3 anos meu pai foi tomar conta do cinema... Você com 3, 4 anos, não tinha televisão, nem computador. O cinema era enorme! Da onde eu era, o cinema cabia 1500 pessoas, a tela era enorme. Você vendo e tal... eu fui pegando aquilo, né. E aos 10 anos, no lugar de uma "bicicreta" que meu pai ia me dar, eu quis uma câmera. Foi quando eu peguei e fiz um curta, mas baseado... eu via muito falar na igreja de religião, de fim de mundo, e lia muita história em quadrinho. As "história" em quadrinho mostrava (provavelmente nomes de heróis, 1' 42'') aquelas coisa toda. Aí eu fiz “Juízo Final”, aonde acho que daí nasceria os tais dos “caixão”, porque tipo, o que eu pus de disco era caixão voando. Os “caixão voava” e conforme eles “vinha” assim, eles mandavam a luz para baixo e a pessoa que era boa... desaparecia. Era como se fosse realmente para um outro mundo, e os “ruim” ficavam “parado”, era num jantar, num pique-nique, num salão de baile. Os maus ficavam petrificados. E aí iam apodrecendo, virando vermes. Eu me lembro que meu pai ficou apavorado, porque eu ofereci um ingresso por cada quilo de vermes de goiaba. E a criançada saiu feito louca, então trouxeram sacas e sacas de vermes, né. E aí eu tive que fazer um negócio bem exagerado, um mundo de verme até desaparecer na terra, e aí eu criei pela primeira vez, descobri a fusão. Descobri que voltando o filme e filmando outra vez saía uma fusão. Então por isso que o pessoal dizia que eu tinha uma linguagem... eu nunca estudei, fui fazendo na prática o cinema. Eu achava aquilo muito legal, as fusões então... ficava aqueles vermes, se “transformava” numa grama, e dessa grama saía um grupo de garotos correndo, né. E aí como morava num cinema, eu fiz realmente o filme em 16 mm e o meu pai todo orgulhoso... filho único... meu pai foi toureiro, minha mãe cantora de tango... eram artistas, né. E ele se dava muito com o padre, então a primeira coisa que ele fez foi chamar o padre para ver o filme. Aí passaram realmente no projetor, 16 mm. Só que com o padre veio o “sancristã”, coroinha, na época tinha “filhas de Maria”, e o cinema lotou. Aí meu pai ainda pôs uma música sacra pra ver se fechava. E o padre ficou assim... porque eu tava mais ou menos condenado pela igreja.  Porque ao fazer um ano antes, eu era... eu puxava o saco do meu pai, porque a igreja precisava sempre fazer aqueles espetáculos “beneficientes” aquela coisa toda, né. Então o padre me pôs pra dirigir uma peça infantil, uma versão de “Branca de Neve”[1], e como a menina não gritava, eu fazia ela cair, e o caçador quando chegava perto ela tinha de gritar. Aí eu mesmo fiz o caçador, só que eu descobri que ela tinha medo de lagartixa, e peguei uma lagartixa no fundo do cinema, larguei numa caixa de fósforo e entrei em cena. Quando eu pus a lagartixa, ela abriu o berreiro e nossa... todo mundo aplaudindo! Só que aí “subiu” os pais, ela começou a gritar, mas não dava mais, aí ficou até mudo, ela começou a rasgar toda a roupa, aí os pais dela “subiu”, foi aquela bronca, o padre e tal. E aí tava de mal assim, o padre me cortou de fazer qualquer coisa na igreja, tal. Aí eu quis fazer essa fita pra ver se sensibilizava o padre. Mas ele ficou assim quando terminou, tava seis cadeiras, se levantou, e eu fui todo assim, dando interpretação de inocente e falei "é agora... meus 15 minutos de fama". Aí ele me pôs a mão na cabeça, e eu falei "Deus do céu! O homem gostou demais." Mas aí ele voltou pro meu pai e falou: "Seu Antônio, seu filho é um débil mental!" E aí começaria realmente, a fazer uma série de fitas... tudo feito por gostar, né. Eu via negócio de macumba, então achava legal; eu ia assim num velório, né.. que era “velado” uma pessoa, via todas aquelas pessoas, “aqueles enterros”... e comecei a gostar “pelo gênero”. E muito cedo, vendo histórias em quadrinhos, tinha as revistas de terror, colecionava tudo. Gostava das fitas do Boris Karloff. Até ganhei ultimamente um anel da filha do Boris, que eu uso quando faço o Zé do Caixão. Conheci o filho de Bela Lugosi, o neto de Don Channey. Me senti realizado, né. As fitas que eu acompanhei né. E hoje eu tô até atrás lá em São Paulo para conseguir todas elas, as fitas né. Gosto. E acho que por aí começou o lado meu do terror.

Eu: E aí mesmo você já falou de um ponto que vai seguir ao longo da carreira, que é jogar bichos nas mulheres.
Mojica: Isso. Aí começou. Já começou com os vermes (risos)...

Eu: A lagartixa, né...
Mojica: Isso... a lagartixa foi o primeiro, depois os vermes, aí não parei mais. Foi escorpião, besouro, taturana, aranhas, ratos, sapos. Então, isso eu faço demais. E essa daí (referindo-se à "A Encarnação do Demônio") aliás eu pus até minha esposa porque ninguém tinha coragem de fazer, né. Aí ela tinha que mostrar realmente...

EU: Foi depois daí que ela virou sua esposa?
Mojica: Não, não. Ela já era minha esposa. Por isso que ela topou fazer (risos). Ela tá comigo aí (no Hotel).

EU: Você tem essa separação do Bem e do Mal...
Mojica: Tenho.

Eu: Sim. E você fez realmente (o filme a que ele tinha se referido anteriormente) pra agradar.
Mojica: Sempre. Mas sempre com uma mensagem, porque sempre o Zé do Caixão acaba ferrado.

Eu: Exatamente. Só que no "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" ele acabou demais, né, que foi a censura da Ditadura.
Mojica: Foi. É que o "Esta Noite" teve intervenção da censura né...

Eu: Sim, eu sei. Foi o Augusto da Costa[2] que escreveu o final, né.
Mojica: É... Esse cara me deu o final pra fazer, me obrigaram a pôr uma música religiosa, tal.

Eu: Eu sempre soube que o Zé do Caixão se dava mal no final, mas no "Esta Noite" é absurdo.
Mojica: Muito.

Eu: Eu queria saber como era o final antes, que você criou.
Mojica: O final realmente eu procurei no “A Encarnação do Demônio”, eu consegui esse tal de “Reno”[3] nos Estados Unidos ele faz o Coffin Joe, ele faz o Zé do Caixão infame. Então todos os halloween ele se apresenta, tal. De repente eu vi a capa de um jornal, tava em... Piracicaba. Na capa vinha eu: Zé do Caixão não sei o quê. Falei: “Puta que pariu”.  Exatamente eu aos 30 anos, mas não sabia que era o cara. Falei: “Porra, sou eu aos 30 anos, porra. Como é que eles conseguiram essas ‘foto’, tal. O cara fez as ‘pose toda’, né.” Aí eu começo a ver, sai revista com ele, tal. “Têm fotos até demais, né. Como é que esses caras...”  Aí comecei a olhar bem a roupa. Era tudo igual. Só o medalhão que eu descobri que era diferente. Falei: “Não sou eu.” Aí comecei a procurar e descobri que ele era, é um americano. Veio fazer dublê nessa fita porque ele é parecidíssimo comigo, realmente, aos 30 anos. E ele fez um curta agora, que eu vejo, ele se inspirou no “A Meia-noite”, as ‘música’ do “Despertar”. Ele faz... é gozado, ele faz os curtas lá e ele fala português. Ele procura imitar justamente as palavras: “Boa noite, senhorita” tal.

Eu: Sem dublagem, né?
Mojica: Não, ele faz direto. Só as meninas você vê falando inglês, todos. Mas ele faz questão de falar... e mais do que nunca, agora que ele teve aqui, foi comigo no Serginho Groissman, né. Aprendeu a ‘sortar’ pragas, maldição... ele fez aí, fez um sucesso no Brasil. E veio agora pro lançamento da fita, tal. Tudo por conta própria. Ele mesmo se ofereceu de vir e a gente trouxe ele. Ele veio aqui, a despesa dele é toda nossa. Só não pagamos a viagem pra ele. E a única coisa que ele me pediu foi realmente uma unha original, né. E eu até agora não mandei.

Eu: Não?
Mojica: Não, mas vou mandar. É que eu não tenho tempo. Tô viajando demais... saio de um evento, vou pra outro, então não tenho tempo. Mas eu parando vou pegar uma das unhas e mandar pra ele.

Eu: O “Geração Maldita”, que era o filme que você ia gravar antes de ter o pesadelo do Zé do Caixão, você já estava determinado a chocar um pouco o público.
Mojica: Já era. Já era um filme... O “Geração Maldita” foi muito forte.

Eu: Você acha que o Zé do Caixão chegou e você, já tava com uma idéia de chocar e você resolveu: “Vou botar tudo em um personagem só”? O Mal.
Mojica: É. Eu tava... “Geração Maldita” realmente era a mudança dos jovens que ‘estava’ realmente atravessando uma outra fase que veio com “Juventude Transviada”, né. Aí a juventude pegando um outro caminho. Aí eu via “Geração Maldita” assim, como algo que ia surpreender aqui no Brasil. Eu juntava realmente os ‘mauricinho’ como a gente chama, lá da Rua Augusta, né, os filhinhos de papai, delegado, político, então, em... em briga com marginais. Então era um conflito legal, pegar os caras de favela com os mauricinhos do centro. Essa era a idéia, tal, mas daí veio esse pesadelo, tava tudo programado pra começar o outro, mas eu falei: “Não! Eu vou seguir...”. Eu realmente vi aquilo como um aviso, né. Era o que eu gostava... de terror. Não queria saber de, de repente, a Igreja me condenava, porque realmente a fita na época foi forte demais, pô! Pra sexta-feira, naquela época, falar em comer carne era o fim do mundo! Você era considerado o diabo. Basta dizer que eu fiz e sofri! Eu, quando a fita lançou, não poda sair na rua, que eu sempre gostei do preto, saía... Nossa! O pessoal se benzia... aí eu precisei trazer, realmente, na época, um guarda-costa, tudo, porque eu andava com as ‘unha comprida’ mesmo. Eu só cortei agora depois do “Encarnação”, mas sempre andei com as ‘unha comprida’. E cortei porque tava atrofiando a mão, e a liberdade de você ter as mãos livres é muito bom.

Eu: Zé... Mojica... Eu queria saber sobre a cartola e a capa preta. Eu li no livro (a Biografia “Maldito”) que você fala que é influência do Drácula, e a cartola é de uma marca de cigarros, se eu não me engano.
Mojica: Tinha... cigarros "Clássico"

Eu: E não tem uma...
Mojica:... que vinha uma cartola... e eu fumava esse cigarro. Vendo a cartola e... o pessoal pegava meu estúdio e eu não sabia lá que o zelador era... era meio macumbeiro né.

Eu: É. Exatamente. Só pra completar a pergunta: não tem nem uma ponta de um Exu nessa cartola e na capa preta? O Exu, brasileiro, já que você sempre mexeu muito com esse negócio...
Mojica: É... a capa, na verdade, eu peguei a primeira capa original. É, eu peguei a capa realmente, com um cara de Exu. O cara que praticou negócio de macumba lá de Exu. Esqueceram lá (telefone tocou).

Eu: Só para voltar à pergunta, você estava falando da capa preta...
Mojica: É... a capa preta, eu procurei saber com o pessoal que eu tinha alugado o estúdio que hoje é o Metrô Santa Cecília. Na época ele era da Organização Vitor Costa (que depois se tornou a Globo), ai eu aluguei aquilo para fazer “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, e de repente... eu não sabia que os ‘cara’ a noite praticavam negócio de macumba, esse negócio todo. E esqueceram essa capa. Aí eu pego essa capa... eu já tava com o personagem, só que não sabia, já tinha sonhado, mas não sabia que roupa, eu só via ele preto, como tô agora aqui, né? Até pus o pijama preto, que eu sentia né... mais ou menos o que eu vi no sonho, né. Eu fiz uma... essa manta toda de preto, na época o pessoal achou estranho demais. Aí com aquela capa falei: “Pô. Com o maço de cigarro... tá feito, né.” Aí a única coisa falei: o medalhão né. Eu fiz lá os símbolos. Depois eu passei pra “Fênix”, que renasce das cinzas; eu uso um medalhão que simboliza os quatro poderes, que ‘é’: os olhos de Rasputin, que ‘é’ os olhos, né. Aí eu venho com o Buda, que era o poder realmente da mente. Eu venho com Cristo (tudo no medalhão, quatro poderes, né), que é representado com as mãos, ele curava, então tem uma energia fantástica nas mãos. E Hitler (o qual pronuncia Ítler), que quase ganha o mundo pela voz, né. Falando com o povo, tal, né. Então são pra mim considerados os quatro poderes. Então, dessa.... daí nasceram então a capa, depois eu fui aperfeiçoando mais...

Eu: Inclusive, no “Encarnação do Demônio”, a capa vem com um desenho que é um símbolo da umbanda, não é? (O tridente de Exu).
Mojica: É! Eu ponho a cruz e o tridente de cabeça pra baixo. Aí eu ponho assim nas ‘costa’ ... quer dizer, na verdade não é costurado na capa, é um negócio que eu mandei fazer né. Quem me fez foi “Arthur Vi”, que a capa também, né. Fez todos os ‘traje’ da fita, meu e das ‘menina’. E aí eu achei que o símbolo é esse. Realmente é o símbolo, né. Eu tenho livros lançados no passado, crônicas de terror, sempre levando esse símbolo da coisa, então eu usei isso na capa.

Eu: E queria saber outra coisa. O Zé do Caixão, ele é bem mulherengo. E o Mojica, no início da carreira, também é, né?
Mojica: Eu fui considerado um grande mulherengo. Fui casado várias vezes, tenho sete filhos. Tive 4 esposas, algumas tiveram filhos, outras não.

Eu: E a busca do Zé do Caixão por um filho, tinha alguma coisa a ver com a sua busca, Mojica, por um filho?
Mojica: Não. Não porque quando eu fiz “À Meia-Noite" eu já tinha um filho. Então a partir que eu já tinha filho, não tinha nada a ver. Era realmente um problema dele, da continuidade do sangue, que é onde eu cheguei à conclusão que é através de filhos, neto, né? Eu hoje tenho filha que segue meu caminho, que faz a vampira, Liz Vamp. Tenho neto que já tem tendência artística. Tenho vários... 11 netos! Duas meninas e o resto tudo homem. Mas eu tenho neto que já dá pra ser... dá pra ter bisneto. Mas eu achei a flosofia do sangue uma coisa fantástica. Ninguém mais do que o próprio filho para conseguir... a sua luta, né. Mas eu não forço nenhum filho... quem não gostou, saiu... eu tenho filha que faz biologia, outra trabalha com roqueiros, outro foi quase reitor de faculdade, o advogado da família, um cara inteligentíssimo, professor, tal. Cada um seguindo seu caminho... outra trabalha com marketing. Cada uma faz o que quer... outro gosta de ficar fazendo invenções tipo Professor Pardal. E cada um seguiu pra um canto, eu não decidi em nada... eu fiz como meu pai. Meu pai me deixou livre. Eu quis seguir isso. Não era esse o caminho que eles ‘queria’. Mas quando ele viu que eu quis só isso também, não se interpôs, o que era muita coisa.

Eu: E sobre a mistura do personagem com o criador: José Mojica e Zé do Caixão. Aqui no Brasil foi um dos primeiros, ou o primeiro. Mais tarde teve o Didi e o Renato Aragão, mas acho que você foi o primeiro aqui a misturar personagem e criador, porque as pessoas vêem você como o Zé do Caixão.
Mojica: É... eu acho que não tem muito a ver. Essas pessoas aí... com as unhas cortadas e tudo... Quando eu andava com as unhas, tudo bem, o cara: “Ô Zé do Caixão!” e tal. Mas a partir que eu cortei, eu achei que... não. O pessoal ainda me vê aí: “É o Zé do Caixão”. E aí eu descobri que possivelmente é mais pela voz. A voz passou a ficar muito mais marcante, eu não sabia. Mas nas muitas entrevistas que eu venho dando, as pessoas batem nisso, que a voz ficou marcada... pego no telefone, e o pessoal diz: “é ele mesmo!” As pessoas costumam achar que a pessoa está enganando, mas quando eu pego no telefone, eles ‘sabe’ eu dou entrevista, a pessoa acredita, porque a minha voz, ela realmente é um grave meio fanhoso, diferente, então as pessoas... marca.

Eu: Queria até pegar outro ponto agora, que você é conhecido no cinema muito mais como Coffin Joe, lá fora, infelizmente, do que no Brasil como Zé do Caixão.
Mojica: Não só lá como na América Latina toda.

Eu: Aqui você foi mais conhecido como o personagem que ia nos programas de TV. E tanto que você falou, a voz é conhecida, porque o cinema antes era dublado.
Mojica: Isso.

Eu: O que você acha disso, do Zé do Caixão um personagem muito mais brasileiro, fazer tanto sucesso lá fora, e não tanto no cinema aqui no Brasil, que tem aquele negócio do terror brasileiro.
Mojica: Acho que exatamente por eu levar um cinema nosso, tupiniquim, levar realmente o nosso terror, sem imitar os americanos, os europeus, não tem imitação nenhuma, e mostra que é Brasil mesmo, é daqui. A partir que eu exploro muito a macumba, essa coisa toda, então as pessoas ‘vê’ que é coisa nossa, e eles gostam disso, sempre me falam: “Mas todo mundo, cês tem lá... os maiores misticismos estão lá... as matas ‘fantástica’ do Amazônia e as nossas ‘praia’, e as nossa mulheres são as mais lindas do mundo!” Cada vez que eu encontro uma no exterior e falo “aquela!” Quando eu vou conversar com ela, eu acho que é diferente, mas é brasileira que ganhou bolsa e tá lá fora. Então as mulheres mais lindas são daqui.

Eu: Mojica, eu queria falar agora sobre a época que você foi massacrado na Ditadura, quando Zé do Caixão não podia fazer aparição direta em filmes, e você passou a fazer curtas...
Mojica: E a escola de Arte dramática que eu comecei em 49 no Sinai, né. Fazendo realmente, ensinando cinema, arte dramática da maneira que eu aprendi, né. Por isso que não adianta ninguém me copiar porque minha linguagem é única, né. Os próprios americanos ‘diz’ que é uma linguagem cult. Eu tive lá nos Estados Unidos agora, um cara falou se eu podia... me trouxe um papel pra ‘mim’ assinar, porque ele ia tentar fazer: “Eu vou fazer a sua linguagem, mas eu queria a sua autorização”. Fez um filme lá, bom e tal. Mas.. São Francisco, não tem nada a ver! Já teve assistente, quando eu fiz “Exorcismo Negro”. A Cinedisc pôs o Adriano Stuart, pra ser meu assistente, pra aprender de que maneira eu faço. O Adriano com dez dias trabalhando comigo, falou: “Olha, não dá. O homem faz de um jeito que a gente nem sabe como é que ele consegue montar. É completamente estranho: ele tá aqui, tá num close, daqui a pouco ele tá fazendo uma cena que não tem nada a ver com essa. E depois sai ... Não dá!” E acabou trabalhando aí, no... com a morte do Jece, a gente teve que trazer ele pra “Encarnação”, né. E aí ele tornou a falar: “Oh... não tem jeito. Pessoal pode ficar com você grudado, mas não aprende a maneira como você faz. Quando você morrer, você vai com a sua linguagem pro cemitério.”

Eu: Queria que você falasse então sobre a sua vontade de chocar. Quando você não pôde mais fazer filmes com o Zé do Caixão, acho que deu uma frustração... mas pelo que consta no livro (“Maldito”), você fez o primeiro filme de zoofilia hardcore do Brasil.
Mojica: Eu usei pela primeira vez um pastor alemão, que o dono do cachorro... eu vi e falei... o cara falou: “Olha, tenho X em dinheiro. Eu preciso de uma fita que dê todo o dinheiro que possa...” e esse era um amigo meu, “e aí eu faço a ‘Encarnação do Demônio’. Se a fita estourar, eu faço a ‘Encarnação do Demônio’”. Bom, eu fiquei todo, né... bom, tenho que fazer um filme que desse o dinheiro pra mim, eu só tava sonhando com o “Encarnação”. Então foi quando, ao mesmo tempo que ele tava falando comigo, ele tava com um português que tinha um cachorro. Aí eu acabei pegando, era muito amigo do dono do “Notícia Popular”. Eu sabia que se fosse falar com o produtor, ele não ia usar o cachorro, mas eu mandei os ‘cara fotografar’ o cachorro e saí: “O cão não sei o que, pela primeira vez no cinema, vai explodir...” Porra aí o produtor já veio me procurar, mas eu era um ídolo. Era como o dono do “Notícia”... que ele nasceu no dia 15 de outubro de 63, no dia que nascia o Zé do Caixão, que eu faria o primeiro programa de televisão com o Valter Foster, o  homem que deu o primeiro beijo na televisão, e nascia o “Notícia Popular” junto comigo, né. E aí ‘se’ tornamos assim, como dois irmãos, né, direto... pra mim foi muito chato quando acabou o “Notícia”, né... as ‘unha sangrenta’, que era um jornal que era só espremer que saía sangue, né. E aí eu acho que o meu negócio de chocar sempre me fascinou e eu sempre falei que é o meu sucesso. Isso mesmo nas fitas que não têm Zé do Caixão, eu sempre ponho coisas diferentes, e aí, quando era pra fazer uma fita pornográfica eu... já pus anúncio pedindo as ‘muié mais feia’ do Brasil que fazia pornografia; pus o cachorro, que o cara dizia que não, mas quando eu pus o cachorro... que eu pus a mulher pelada, foi só ‘sortar’ o cachorro e o cachorro fez tudo. E aí não deu outra: a gente ia fazer a continuação com o cachorro, todo mundo caindo em cima, mas o português envenenou o cachorro... porque ele chegou à conclusão que o cachorro fazer aquilo, é porque era viciado. Então, a mulher tinha culpa no cartório... e matou o cachorro.

Eu: E a mulher?
Mojica: Sei lá o que aconteceu com a mulher... Ele ficava assim olhando: “Não é possível! Meu cachorro não pode fazer isso...” Mas tava fazendo. Eu falei: “olha, não precisa nem treinar! Vai trocando aí chassis um atrás do outro e deixa o cachorro.” O cachorro já entrou nas ‘preliminar’... saiu fazendo tudo! E foi o maior estouro de bilheteria, mesmo eu tendo as ‘mulher’ mais feias, estranhas, explodiu mesmo! Aí o cara ganhou, e aí falou: “Não, eu vou fazer...” e aí começou a querer fazer filme de sexo, aí acabou. Tudo o que ele ganhou, acabou perdendo tudo. Que saiu daquela novidade, né, passou a ser coisa... cismou de querer dirigir, aí dançou. Tem hora que ele vem... eu faço uma homenagem no “Encarnação” pra ele, mas tá... arrasado. Só vive da aposentadoria, R$ 450,00 por mês... Aí vem sempre em casa, e eu sempre dou um troquinho pra ele.

Eu: Então, queria saber um pouco sobre o Zé do Caixão na TV, agora. Você primeiro apareceu como jurado nos programas, né...
Mojica:  Fui jurado...

Eu: ... e foi aí que você ficou conhecido do grande público brasileiro... e fez também o Cine Trash, na Bandeirantes.
Mojica: Fui jurado, mas (quanto ao Cine Trash), antes eu tinha feito “Além, muito além do Além”, com histórias que ‘chocava’; depois fui pra Tupi, fazer... depois vim pra Record, fazer “O Show do Outro Mundo”, mostrando histórias, e júris polêmicos, como... tem esse padre aí que é muito polêmico...

Eu: Padre Quevedo.
Mojica: O Quevedo, eu pus o Quevedo misturado com padre, pastor de júri, então dava aquela polêmica danada.

Eu: Os freakshows que você armava lá no galpão mesmo.
Mojica: Eu tive muita coisa assim... Sou muito chamado em faculdade pra palestra, né. Aí eu tô no Brasil todo dando palestra, né, e mantenho a minha escolinha. Em São Paulo, continuo com a escolinha.

Eu: Eu queria saber... entre os programas, assim, o Cine Trash tinha um pouco a ver... muito a ver com filmes de terror, só que mais internacionais... e depois você aparece no Canal Brasil com um programa de entrevistas. Qual você acha que cabe mais ali, pro Zé do Caixão?
Mojica: O Cine Trash, na realidade, ele tinha força pelas minhas ‘praga’ que se tornaram famosas, né. Então o pessoal gostava muito das ‘praga’, era a força realmente do programa, e ganhei muitos fãs com o Cine Trash. E as ‘fita’ que era considerada trash mesmo, a gente passava pouco. Eu só não punha as minhas fitas! Aí eu fiz o “Cine Cult”, na madrugada, tal. E eu acho que vai... peguei um grande público infantil, que me segue até agora... e depois eu fui fazer Playcenter, as “‘Noite’ de Terror” do Playcenter, quem montou fui eu, né. Aí começou aquele público... também já vinha aquele público infantil do Playcenter me seguindo, né. Então acho que Playcenter e os ‘filme’ trash me ‘deu’ essa cobertura de crianças fantástica, que a audiência era muito grande, perturbou na época a Globo. De repente me tiraram, o juizado entrou, querendo que o programa fosse pra madrugada! Por isso que parou... Era às 3 e 15. Eles não acreditavam, aí começou a dar aquela coisa toda, aquela audiência fantástica. Diz que não tinha censura, mas entrou o juizado pra dizer que não podia... e eu queria explicar que havia sempre uma mensagem, o mal sempre perdia nas fitas, né... que era escolhida por causa da mensagem legal... mas não quiseram saber. Mas depois que eu saí continuou passando fita de terror, passando na Record, passa na Bandeirantes, de dia e ninguém fala nada... Então era perseguição mesmo! Agora, você tá querendo fazer uma comparação dos programas...

Eu: Não, antes deixa só eu pegar um gancho com o que você falou aí. Nos filmes, você acha importante que os filmes mostrem o lado do mal, como você faz com o Zé do Caixão, que é a personificação do Mal, que não tem moral nenhuma, mas com o final... você acha importante o final ser... sempre retomando pro Bem?
Mojica: Eu acho! Eu acho porque... é o que eu falei, eu influencio muito as crianças. Então eu tenho que trazer essa mensagem, bater nisso. Então sempre, através tanto ‘das televisões’, o que eu fazia, não digo hoje porque eu tenho essa obrigação no programa da meia-noite, né, que vai no Canal Brasil; mas todos eles, sempre ‘termina’ com a mensagem pra criança, positiva.

Eu: Você acha que é importante dar essa mensagem positiva exatamente pela influência que você tem nas pessoas?
Mojica: Eu acho, eu acho que tem, porque senão... começa uma imitação... e criança, sabe como é que é, começa a ir... e se elas ‘ver’ o castigo que ele sofre, eu sempre ponho realmente bem absurdo a maneira de ele sofrer. Essa aqui, né (referindo-se a “A Encarnação do Demônio”), o cara é esfaqueado, né, é muito forte...

Eu: É, só que um detalhe... dá a entender que ele sobrevive, ele volta...
Mojica: Mas se você ficar pensando, eu deixei um gancho. Que você sai, ele deitado, ele morrendo, com a mulher lá; mas aí você já passa para elas indo na sepultura dele. Aí o gancho é: será que é ele que tá lá? Será que naquele dia do Playcenter, a moça não insistiu e não conseguiu levar ele para um médico, pra alguma coisa e ele não sobreviveu? E de repente pode ser um indigente que tá lá, enterrado... Isso aí a gente... já deixei o gancho... que há uma previsão de se fazer “Sete Ventres para Um Demônio”, que é uma continuação...

Eu: Aí sai da trilogia para uma quadrilogia!
Mojica: É, aí seria uma quadrilogia, mas pelo sucesso que a fita fez, pela crítica... Foi a primeira vez na minha vida que eu ganhei um prêmio da crítica. Sempre me desceram o pau! Ninguém falou mal! Foram mais de duzentas e tantas reportagens de revista, jornal, televisão... todo mundo falando bem! Nunca tive isso na vida... Sempre de um lado e do outro e puxavam a corda. Essa não, ficou legal, ganhei vários prêmios no exterior, devo ganhar na Argentina, tô concorrendo agora em março, com o “Encarnação”. Devo sair com alguma coisa de lá. Se não for o primeiro lugar... na Espanha eu ganhei, foi o primeiro, né, de fita de terror, considerado o maior filme de terror o mundo! A Itália fez homenagem, Portugal, a Grécia... eu acho que ela tá satisfazendo lá fora , muito! Falta chegar nos ‘americano’, quando chegar nos ‘americano’ ...  porque eles realmente divulgam mesmo.

Eu: E agora vamos voltar lá, no Canal Brasil, onde o Zé do Caixão agora apresenta um programa de Talk Show.
Mojica: Então, não apresento, mas... ontem foi  última entrevista, com o Zé Ramalho... fizemos só aqui no Rio 23 entrevistas, agora vamos fazer só as ‘reportagem externa’, né. Eu já quero deixar tudo gravado, até o fim do mês, já o ano todo, pra poder ficar à disposição, poder viajar com o “Encarnação”, e poder atender uma série de pedidos... pensar na continuação... se não for a continuação,  vai ser outra de terror. No momento eu tenho o “Devorador de Olhos”, eu acho, personagem novo, mas a fita é muito violenta! Tem cenas do cara arrancar o olho da mulher com saca-rolhas! Ele precisa do líquido dos olhos pra poder sobreviver; ele pega uma doença no Amazonas, e quando dá aquela dor, ele tem que sair atrás... e só serve olhos de mulher! Então é uma fita que vai ter muita mulher.

Eu: E vai ter muita maldade...
Mojica: Muita, muita mesmo! Ele é um sádico mesmo!

Eu: Ah sim... além de sobreviver, ainda gosta da mulher sofrendo...
Mojica: Gosta, gosta! Dos ‘líquido’, e ele mantem um conservatório de cegos. Ele é muito rico, e ninguém sabe que o cara dono do conservatório é o devorador de olhos.

Eu: Podemos esperar um final que castigue esse vilão?
Mojica: Muito forte! O final é muito forte! Basta dizer que a única coisa que ele respeita é criança.  E a dor dele vai começar exatamente quando ele tá com uma menina de oito anos e ele precisa dos olhos, não pode esperar. Aí vai ter um final eletrizante, muito grande. Entre gostar e entre os olhos dele inchar e explodir.

Eu: Muito obrigado, Mojica. Acho que tirei todas as dúvidas. Obrigado mesmo!



[1]  A peça foi “Chapeuzinho Vermelho”, conforme o livro de Barcisnki e Finotti.
[2]  Capitão da seleção brasileira de futebol na Copa de 1950.
[3]  Raymond Castille, sósia de Zé do Caixão nos Estados Unidos, conhecido como “Coffin Ray”. A semelhança é com o Zé do Caixão de 40 anos atrás.

domingo, 19 de maio de 2019

Brevidade

A vida é muito curta para aprender a diferenciar Selena Gomez, Demi Lovato e Miley Cyrus.

domingo, 17 de março de 2019

Sobre ter filho

Ter filho é como estar em uma festa muito louca.
De outra forma, como estaria eu cagando, usando um chapéu de Papai Noel, em pleno março?
Ou dando pulos gritando "Pula, pula, pipoquinha"?
É só o amor que diferencia um filho de um selo de LSD.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Bumbum

— Oi.
— Pode entrar, senta… Tem o cartão?
Entrego o papelzinho. Silêncio constrangedor, e o cara de costas pra mim, no computador. A sala minúscula, no final do estabelecimento, traz uma tensão natural.
— Olha, eu nunca fiz isso, e tô nervoso…
— Ha Ha Ha! Lógico que fez! Em algum momento da vida, você já levou; pode até não lembrar, mas já tomou sim.
— Se eu não lembro, eu não fiz…
— Bobeira. Um homem desse tamanho.
Coço a barba. Está pequena demais para me entreter por muito tempo. Eu não devia ter raspado em janeiro. Fiquei um tempo com aquele queixinho de Noel Rosa.
— Tá. Olha, eu realmente tenho pavor disso, e me deixa triste ter que pagar por isso. É questão de necessidade, mesmo.
— Estou terminando aqui de te cadastrar. Burocracias. Mas não precisa ficar nervoso. Eu estou acostumado a fazer isso. Não vai doer…
— É o psicólogico… Eu sei que não vai doer, quer dizer, espero que não. Mas só de olhar, eu já fico com a boca seca.
— Então não olha – ele ri. Sério, relaxa… Ficar nervoso é pior.
Ele abre o pacote com um rasgo e prepara tudo. Suas costas não me deixam ver o que faz com as mãos. Uma gota de suor escorre pela testa, cai na pontinha da sobrancelha e eu torço para os pelos absorverem o líquido.
— Olha, o volume nem é tão grande. Dava pra resolver no braço. Mas normas são normas: tem que ser no glúteo.
Faz uma pausa e depois continua, sádico:
— Quando eu estava na faculdade, tomei uma que me deixou mancando o resto da semana toda. E eu tive que tomar três numa semana só. E violenta.
O suor escorre pela maçã do rosto. Passo o dedo antes que faça a curva e entre na minha boca. Na ausência de fala minha, ele sustenta o monólogo:
— Você só precisa tomar uma. E, modéstia à parte, eu sou um ótimo profissional. 
— Tá, mas… Como vai ser?
— Vira de costas e abaixa um pouco a bermuda.
— Tá, mas… Que posição? – eu sentia-me sem controle algum da situação; apenas aceitava as ordens.
— Só fica de costas, em pé. Se quiser, apoia o braço na parede.
Que ridículo. Abaixo a bermuda apenas o suficiente para a execução.
— Ah, tem bastante gordura nesse glúteo. Nem vai doer.
Filho da puta! Me chamou de bunda gorda!
Fsss. Fssss. Barulho de algo gelatinoso sendo espirrado.
— Que isso?
— Álcool. Vou passar aqui, e se tem nervoso, não olha que já vai entrar.
Fecho os lábios. O nervosismo vem junto com a necessidade de relaxar para que não haja dores. Que confusão mental. Aperto meus dedos para relaxar o glúteo. A picada vem e permanece por uns vinte segundos, durante os quais penso em coisas legais, músicas, qualquer coisa para não pensar naquilo e acabar logo.
Sinto a retirada, seguida de uma pressão e algo colando em minha pele.
— Doeu?
— Não – respondo, levantando a bermuda. Mas eu sabia que não ia doer, é só o nervosismo…
— Pronto. Deixa esse algodão aí um pouquinho, mas já pode ir. Hoje você não vai sentir nada, mas daqui a dois dias você estará melhor.
— OK.
— E tem que perder esse medo de injeção, hein. Já tá bem grandinho…

E assim eu saio, puto da vida por ter pago R$ 20, fora o remédio, para tomar injeção na bunda e ainda ser chamado de glúteo gordo. Mas é a vida de velho. A coluna fica fodida e você prefere passar por cima de seu medo de agulha do que ficar travado.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Resultados da Copa do Mundo

Poucos resultados me interessam... Mas ano passado um resultado de jogo entre países mudou minha vida.

Peru x República Tcheca.

Campo molhado, Peru deslizou e entrou com bola e tudo.
Tô indo, porque o resultado mais lindo do mundo tá chorando aqui, tá na hora do papá...

sábado, 12 de maio de 2018

O celular do ladrão

Rio de Janeiro, Saara, sexta-feira anterior ao dia das mães.
Essa porra tá cheia, acabei me atrasando pra uma reunião. Ando rápido, quase correndo, para que o atraso seja menos sentido.
Passando pela rua dos Andradas, tenho a idéia: vou cortar caminho pelo largo de São Francisco, porque a Uruguaiana tá cheia de gente caminhando e travando a rua, procurando um presente para as mamães. Beleza, boa idéia a minha.
Caminho, com pressa, e no espaço escuro da praça, uma pessoa caminha ao meu lado. Menos mal, duas pessoas caminhando juntas podem afastar possíveis assaltos. O pensamento é esse, isso é Rio de Janeiro. Mas talvez esse meu pensamento tenha sido ingênuo demais. O rapaz ao meu lado puxou papo:
- Aê, playboy!
Ignorei, já que não me considero playboy e não sou obrigado a agüentar desconhecidos me chamando de playboy.
- Perdeu, playboy. Passa o celular, porra!
Puta que pariu. Foi uma falha de comunicação da minha parte. O cara não tava procurando refúgio de assalto; ele era o meio. E eu entendi a mensagem. Parei e virei para encará-lo.
- Pô, cara, faz isso não. Tô cheio de pressa e só tenho esse celular pra falar com os outros, pô.
Ele moveu uma mão na altura da cintura, por dentro da camisa. Não dava para ver nada, e ele podia estar tanto com uma arma de verdade quanto com uma daquelas galinhas de borracha que fazem um barulho engraçado, que eu não ia saber. Sou cego a noite, numa praça mal iluminada, então...
- Meu irmão, tá maluco? Quer morrer, porra???
Levantei instintivamente as mãos, me rendendo, e botei em seguida a mão esquerda no bolso para pegar o celular. Lá estava a carteira, e nem é importante, mas contarei assim mesmo. Eu costumo levar a carteira no bolso direito da bermuda (ou calça), e o celular no bolso esquerdo, mas a minha bermuda estava com o bolso esquerdo furado, um furo tão grande que se eu boto o celular lá, ele cai.
Após essa explicação esdrúxula, tateei o bolso esquerdo, vi que lá estava a carteira, e passei para o bolso direito, onde estava o celular. Entre a mão ir de um bolso a outro, lembrei do bolso furado e soltei um "ahh...", lembrando-me do bolso trocado do aparelho.
Ao pegar o celular, entreguei e fiquei no vácuo: o cara não pegou.
- Tomá no cu, mermão! Tá pensando que é malandro, seu filha da puta!
Não entendi. Nem a reação do ladrão e nem essa mania de a gente falar "filha da puta", mesmo pra homens, quando deveria ser "filho da puta". Não expus a minha última questã.
- Que foi, cara? Toma o celular!
Ele balançou ainda mais o braço que estava com algo na cintura, ameaçando.
- Eu quero o SEU celular!
Ele deu uma intensidade tão grande no "seu", que pareceu me chamar de ladrão, como se aquele aparelho não fosse o meu.
- Esse é o meu celular, cara!
Tomei um empurrão.
- Tá de sacanagem? Quer me dar o celular "do ladrão"???
Tela azul. Eu era o assaltado. Na minha mente, ele era o ladrão. O que seria o "celular do ladrão"? Seria o dele. O meu quando eu passasse para ele, seria dele. Tentei entender a piada.
Não consegui.
- Ué, o ladrão é você. Esse celular é meu. Depois vai ser seu. Do ladrão. Não é?
Ele agarrou meu pescoço. Era um pouco mais alto do que eu. Falou baixinho.
- Playboy, aqui tá tudo escuro, ninguém tá vendo nada. Um monte de parceiro meu aqui. Se você tentar fazer graça, vai ficar por aqui mesmo. E só vão te achar amanhã de manhã. Para de graça, enfia essa porra de celular do ladrão no teu cu e me passa o celular que você realmente usa.
CARALHO! O "celular do ladrão" é o aparelho zoadaço que o pessoal carrega só para, no caso de ser assaltado, não perder o oficial, entregando o outro. Um tipo de bode expiatório, mas sem fazer béeeee. Aliás, pode até fazer béeee, você pode personalizar o toque, né?
O cara achou que meu aquele telefone era zoado demais para ser meu. Não entendi o porquê. Insisti.
- Cara, esse é o meu celular, o que eu uso! Pode ver aqui, tem bom dia que eu recebi hoje, no whatsapp!
Tentei lembrar de quem me manda mensagem de bom dia. Meu pai, certamente, no grupo da família, mas a essa hora já devia estar cheio de papos nada a ver, e não queria expor. Abri o de um amigo, que sempre manda de zoeira. Os olhos do assaltante estavam vidrados no celular. Quando abri a conversa com o amigo, memes do Fabio Assunção dizendo que hoje era sexta-feira, fizeram o maluco cuspir minha tela, já fodida.
- Hahahaha. Poorra! Hoje é dia de pó legal, né? Caralho, tu usa essa porra mermo, mané! Hahahaha puta que pariu...
Ele distanciou-se um pouco, rindo. Voltou pra perto de mim.
- Guarda essa porra, guarda essa porra... Aí, playboy, vou te falar duas paradas...
Eu já estava meio rindo, aquele riso meio nervoso, mas rindo. Falei mais para quebrar o monólogo dele, pra fingir que estava interagindo.
- Coé, cara...
Ele continuou.
- Uma, que se eu tô com uma arma aqui, você morria...
E tirou finalmente a mão que estava sempre na cintura, e mostrou uma latinha de Antarctica de 269ml, toda amassada. Essa era a arma dele.
- E a outra... é que se eu tivesse metido uns celulares hoje, eu ia te dar um. Puta que pariu, tu é muito escroto andando com essa porra...
Ele se afastou definitivamente, rindo pra caralho, e eu segui meu caminho para a reunião.
Cheguei atrasado, mas contei o ocorrido e ninguém lembrou mais do atraso.
O Rio de Janeiro me surpreende a cada dia.